sábado, 24 de setembro de 2011

O privilégio exorbitante dos EUA


Michael Pettis
Valor Econômico


Certa vez, um economista francês me disse que, muito frequentemente, os planejadores econômicos franceses pensam que estão falando de economia, quando na verdade estão falando de política. Talvez um caso em questão seja a afirmação, feita pela primeira vez por Valéry Giscard d"Estaing, em 1965, de que o domínio do dólar americano como moeda global de reserva deu aos Estados Unidos um "privilégio exorbitante".

Giscard não estava falando de privilégios econômicos, embora ele pudesse ter pensado que estava. Durante a Guerra Fria, o status dominante do dólar proporcionou vantagens políticas, mas ao contrário da crença popular os privilégios econômicos foram poucos para os Estados Unidos. No entanto, o dólar proporcionou benefícios importantes aos parceiros comerciais que se dispunham a tirar proveito do sistema. Também levou, várias vezes - mais recentemente na última década -, a desequilíbrios comerciais e de capital que criaram um sério risco para o sistema financeiro global.

Para eliminar esses riscos será necessário reformar o sistema cambial global - por exemplo, substituindo o dólar pelos Special Drawing Rights (SDRs, ou direitos especiais de saque) do Fundo Monetário Internacional (FMI), conforme vêm defendendo o Brasil, França, Alemanha, China, Rússia e outros países.

No entanto, as consequências não serão as que eles esperam. Apesar de toda a discussão animada de políticos e jornalistas (e dos ocasionais generais chineses), a substituição do dólar provavelmente significaria um crescimento mais acelerado e menos dívida para os Estados Unidos. Mas isso ocorreria às custas de um crescimento menor, especialmente para a Ásia e o mundo em desenvolvimento.

Isso fica claro quando examinamos o impacto do acúmulo de reservas no comércio internacional. Segundo a maioria dos comentaristas políticos, há dois "privilégios" principais para os Estados Unidos como consequência do status do dólar de moeda de reserva. Primeiro, ele permite aos EUA consumir além do que pode. Segundo, como os bancos centrais estrangeiros precisam comprar bônus do governo dos EUA para manter como reserva, a taxa de juros sobre os bônus do Tesouro americano é menor do que de outra forma seria.

As duas alegações são confusas. Pegue a primeira. Pode ser correto dizer que a função do dólar permite aos americanos consumir além de seus meios, mas também é correto dizer (provavelmente mais) que o acúmulo de dólares por estrangeiros força os americanos a consumir além do que eles podem.

Será que os estrangeiros podem realmente fazer isso? Muitos comentaristas, e até mesmo economistas, vão rejeitar esse argumento com uma afirmação curta a grossa: "Ninguém coloca uma arma na cabeça do consumidor americano e o força a comprar qualquer coisa". Mas isso apenas mostra o quanto eles estão confusos com as limitações do balanço de pagamentos.

A balança comercial de um país não é simplesmente um resíduo da atividade doméstica, mesmo para uma grande economia como os EUA. Ela é determinada em parte pelas políticas e condições domésticas, mas também pelas políticas e condições internacionais, e, neste último caso, isso afeta diretamente as relações entre o consumo e a poupança.

Como assim? Quando um banco central compra grandes quantidades de dólares ao mesmo tempo em que contém os bancos domésticos, ele automaticamente aumenta a poupança nacional. Se essas economias superam os investimentos domésticos, o país precisa exportar economias para fora (e assim automaticamente fica com um superávit em conta corrente).

Mas, em termos globais, a poupança e os investimentos precisam se equilibrar, de modo que se a taxa global de investimento não subir, a taxa de poupança de seus parceiros comerciais precisa cair. Isso vai acontecer gostem ou não os parceiros comerciais, a menos que eles intervenham um após o outro em igual medida.

Poupanças estrangeiras maiores podem deprimir a poupança nos EUA?

Vamos supor, por exemplo, que, de uma hora para outra, o Banco da Inglaterra decida intervir na libra comprando centenas de bilhões de dólares em bônus do governo dos EUA e limita a compensação dos fluxos de capital. A taxa de poupança da Inglaterra aumentaria dramaticamente, uma vez que o consumo doméstico seria afetados pelos custos de importação maiores e os fabricantes beneficiados com o aumento da competitividade internacional. Seu déficit comercial passaria a superávit com a queda do valor da libra.

Mas a história não termina aqui. Como o Banco da Inglaterra estaria comprando dólares, o déficit comercial dos EUA automaticamente aumentaria. E com o aumento do déficit comercial americano, os investimentos dos EUA aumentariam (algo improvável, uma vez que o dólar mais forte prejudica o setor industrial do país), ou a taxa de poupança cairia no país. Não há outra possibilidade - isso é simplesmente uma identidade contábil. Neste caso, as políticas do Banco da Inglaterra quase que certamente forçariam uma queda na taxa de poupança dos EUA.

Os americanos poderiam fazer alguma coisa - concordando patrioticamente em aumentar a poupança reduzindo o consumo, por exemplo? Não, porque as compras pelo Banco da Inglaterra de ativos em dólar levariam de qualquer maneira a um desequilíbrio da balança comercial, e, se os americanos reduzissem o consumo, o único resultado seria um aumento maior da taxa de desemprego nos EUA. A poupança dos americanos de fato aumentaria patrioticamente, mas como a renda cairia, o volume total da poupança continuaria em queda.

Quando os analistas insistem que somente convencendo os americanos a reduzir o consumo desnecessário o déficit comercial poderá ser reduzido, eles mostram que não entendem o mecanismo global de balanço de pagamentos. A taxa de poupança dos EUA - assim como de qualquer outra economia aberta - precisa responder às mudanças no equilíbrio global de poupança e investimentos. Isso segue automaticamente a maneira como o mundo se abre ao comércio e como os fluxos de capital agem.

Em resumo, se seus parceiros comerciais acumulam dólares e evitam uma retaliação, os EUA precisam ter um déficit em conta corrente correspondente. A demanda total nos EUA precisa superar a produção total dos EUA. É assim que os americanos vão "consumir" mais do que podem.

Então, onde está o privilégio? Peça a qualquer economista para citar as maiores fraquezas da economia americana e é quase certo que ele incluirá em sua lista o grande déficit comercial, a taxa de poupança baixa e os níveis elevados do déficit público. Na melhor das hipóteses, é o acúmulo por uma economia internacional de ativos em dólares que permite essas três condições, e, na pior das hipóteses provoca, sua deterioração.

E o mundo inteiro parece saber isso, mesmo quando não entende exatamente por que. Quando recentemente certos bancos centrais começaram a diversificar suas posições para além do dólar, aumentando suas compras de bônus do governo japonês, ninguém sugeriu que o sortudo Japão estava pelo menos conseguindo participar do exorbitante privilégio americano. As compras de ienes por outros países forçariam a alta do iene, reduziriam o superávit comercial japonês e possibilitaria um aumento do consumo no Japão, em relação à produção.

Certamente as autoridades japonesas não receberam bem esse privilégio. Elas começaram a vender ienes contra o dólar para reduzir o valor do iene - efetivamente convertendo aquisições internacionais de iene em aquisições de dólares. Eles resolutamente devolveram o "privilégio" para os EUA. O Brasil teve a mesma reação. As compras internacionais de bônus brasileiros levaram o ministro da Fazenda, Guido Mantega, a não receber bem a participação do Brasil no privilégio exorbitante, preferindo ele reclamar das guerras cambiais. Conforme ficou claro, consumir além dos meios não é considerado um privilégio para outras economias, mesmo com muitas delas insistindo que é para os EUA.

Os estrangeiros ajudam a financiar o governo dos EUA?

E o segundo privilégio - as enormes aquisições de bônus do governo americano por outros países não provocam pelo menos uma queda das taxas de juros nos EUA e isso não é bom para as empresas americanas? Afinal, qualquer aumento da demanda por bônus, assumindo que não haja mudança na oferta, deve provocar uma alta nos preços dos bônus e uma queda nas taxas de juros.

Mas é claro que isso pressupõe que não haja aumento na oferta, e aqui o argumento se desfaz. Lembre-se de como as compras internacionais forçam uma alta no valor do dólar e assim prejudicam o setor industrial americano, a única maneira de os EUA manterem o pleno emprego é aumentando os financiamentos imobiliários ou os empréstimos públicos (tecnicamente eles também podem aumentar a tomada de empréstimos pelas empresas para investimentos, mas isso é improvável quando o setor industrial está sendo minado pelo dólar forte).

Portanto, a oferta de bônus em dólar aumenta junto com a maior demanda estrangeira por bônus em dólar. Em outras palavras, as compras de títulos de dívida dos EUA por investidores estrangeiros são automaticamente equilibradas pela dívida adicional emitida pelos americanos. Na verdade, caso se acreditar, como a maioria dos economistas, que o comércio é uma maneira mais eficiente de criar empregos do que os gastos do governo ou os financiamentos ao consumidor, a quantidade de dívida adicional americana emitida, na verdade, vai superar as compras líquidas pelos investidores estrangeiros. Na verdade, o aumento das compras pelos investidores estrangeiros de títulos da dívida americana em dólar pode levar a um aumento dos juros nos EUA.

Confuso? Não precisa ficar. Outra maneira de pensar sobre isso é lembrar que um aumento nas compras líquidas de ativos americanos em dólares por investidores estrangeiros é a mesma coisa que um aumento do déficit em conta corrente dos EUA - esta é uma identidade contábil bem conhecida. Portanto, déficits comerciais maiores realmente levam a taxas de juros menores?

Claramente não. Na verdade, é bem mais provável ocorrer o inverso. Os países com a balança comercial equilibrada ou com superávit comercial tendem a ter em média taxas de juros mais baixas que os países com grandes déficits em conta corrente. E o motivo é que o último caso exige um crescimento menor ou um endividamento maior.

Conforme ficou claro, os EUA não precisam que investidores estrangeiros comprem bônus do governo para manter as taxas de juros baixas, mais do que precisam de um grande déficit comercial para manter os juros em baixa. A menos que os EUA estivessem famintos por capital, a poupança e os investimentos se equilibrariam com a mesma facilidade sem um déficit comercial do que com um - ou seja, pelo menos tão facilmente sem as compras por investidores estrangeiros de bônus do governo americano, do que com elas.

A reforma cambial deve preceder o reequilíbrio global. O fato do mundo ter um moeda bastante líquida amplamente disponível para o comércio global é um bem comum, mas assim como todos os bens comuns, ele pode ser explorado para se obter vantagens. Quando os países usam a condição de moeda de reserva do dólar para obter vantagens comerciais, os EUA sofrem economicamente. E o que é pior, quanto maiores forem os desequilíbrios comerciais subsequentes, mais frágil o sistema financeiro global ficará e maior a probabilidade de uma crise financeira.

Se o mundo quiser resolver os desequilíbrios globais, não poderá fazer isso sem resolver a questão do acúmulo de moeda. Setenta anos atrás John Maynard Keynes tentou fazer o mundo entender isso quando argumentou contra o dólar e a favor do Bancor como moeda supranacional a ser usada no comércio internacional. Ele não conseguiu e, desde então, vivemos com as consequências.

As coisas estão melhorando? Na superfície parece que o mundo começa a entender a questão da moeda de reserva. Por exemplo, funcionários dos governos de muitos países falam em promover os SDRs como alternativa ao dólar, mas grande parte do raciocínio por trás disso é confuso. O mundo não mantém mais SDRs, afirma o argumento, em grande parte porque não há um mecanismo formal melhor para criar mais SDRs. Dê um jeito neste último ponto e o primeiro será resolvido.

Mas não é por isso que os bancos centrais mundiais não têm SDRs. Se, no fundo, qualquer grande banco central realmente quisesse se expor aos SDRs, poderia fazer isso facilmente. Ele precisaria apenas copiar a fórmula facilmente disponível em seu próprio acúmulo de reservas. Em vez de comprar principalmente dólares, ele poderia comprar dólares, euros, libras e ienes, e talvez algum dia até mesmo yuan, segundo a fórmula de SDR.

Mas os bancos centrais com a maior parte das reservas internacionais jamais farão isso se não forem forçados, e o motivo são as restrições comerciais. Ao comprar, esses bancos centrais estão implicitamente espalhando suas reservas, afastando-se do dólar em direção a essas outras moedas.

Isso significa que qualquer país que tentar gerar grandes superávits comerciais acumulando reservas forçará o déficit correspondente não só à economia dos EUA, mas a outros países de acordo com o componente cambial do SDR. Mas a Europa, o Japão e outros países têm deixado bem claro que se opõem e essas práticas comerciais e vão intervir, ou ameaçam sanções comerciais para impedí-las.

Em outras palavras, o mundo acumula dólares por uma razão muito simples. Somente a economia e o sistema financeiro dos EUA são grandes o suficiente, abertos o suficiente e flexíveis o suficiente para acomodar grandes déficits comerciais, e, assim, os países que querem ter grandes superávits comerciais precisam comprar dólares. Mas o custo dessa flexibilidade é o crescimento de longo prazo da economia americana e sua capacidade de administrar os níveis de endividamento.

Sem uma reforma significativa na maneira como os países podem manter ativos em dólares - ou seja, restrições à capacidade do mundo de forçar os EUA a aceitarem seu "privilégio exorbitante" -, não poderá haver uma reforma significativa da economia mundial. Se o SDR vai realmente substituir o dólar como moeda dominante de reserva, isso não vai acontecer simplesmente porque há um modelo institucional mais robusto em torno do SDR. Isso somente vai acontecer porque o mundo, ou talvez os EUA, cria regras compulsórias que impedem os países de acumular dólares.

Isso acontecerá em breve? Provavelmente não. Os EUA misteriosamente são contra qualquer redução do papel do dólar enquanto principal moeda de reserva, talvez porque isso seria visto como uma indicação de queda de status, e países como a China, Japão, Coreia do Sul, Rússia e provavelmente Brasil nunca abrirão mão voluntariamente das vantagens comerciais do acúmulo de dólares. Mas pelo menos poderemos abolir a frase "privilégio exorbitante". (Tradução Mario Zamarian)

Michael Pettis
Professor de finanças da Peking University e associado sênior da Carnegie Endowment.

Este é o quarto de uma série de artigos feitos por renomados economistas brasileiros e estrangeiros convidados pelo Valor para discutir a crise financeira internacional e avaliar seus possíveis desdobramentos.

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