GAUDÊNCIO TORQUATO
Estado de S.Paulo
Cena pungente 1: crianças de olhos vidrados, pele e osso, e bandos de moscas passeando sobre os rostos côncavos. O documentário na TV mostra o campo de refugiados de Badbaabo, o maior de Mogadíscio, capital da Somália, país que, com Djibuti, Etiópia e Eritreia, integra o Chifre da África. Na região devastada pela pior seca em 60 anos, há 10 milhões de crianças dilaceradas pela fome, das quais 29 mil morreram nos últimos três meses por absoluta carência de proteína. Iman Abdi Noono, de 60 anos, andou dez dias até o acampamento, mas seis de seus nove filhos morreram no caminho. Um dado arremata a lúgubre paisagem: a fome no mundo mata uma criança a cada cinco segundos.
Cena pungente 2: flagrante de um menino preparando uma pedra de crack, no centro de São Paulo (primeira página do Estado, 21/9), ilustrando matéria sobre usuários da droga, que se igualam (38%) aos viciados em álcool na rede pública de saúde em cidades paulistas entre 50 mil e 100 mil habitantes.
Cena pungente 3: no hospital de Emergência e Trauma, em João Pessoa, vídeo mostra uma furadeira de parede sendo usada para abrir o crânio de um paciente que sofreu acidente de moto.
As três cenas, mesmo diferentes, deixam transparecer sua origem comum, eis que são raízes da frondosa árvore da miséria com que se defronta o planeta neste início da segunda década do terceiro milênio. Já se disse que o mundo está dividido, hoje, em três espécies de nações: aquelas onde as pessoas gastam rios de dinheiro para não ganhar peso, aquelas onde milhões de seres comem para viver e os devastados territórios em que os famintos não sabem de onde virá a próxima refeição. Na perspectiva do pão sobre a mesa, a visão planetária é aterradora, pois 1 bilhão de pessoas passa fome e 1,5 bilhão vive na pobreza.
Aqui, em nossos trópicos, se fez e se faz enorme esforço para aliviar as cotas de miséria. Mas, é forçoso reconhecer, há ainda milhões de barrigas vazias, ao lado dos olhos sem vida de milhares de crianças desnutridas. Temos, sim, um pouco de Somália resvalando pelas beiradas sociais.
Como o solo devastado extrapola a fronteira do alimento, conveniente seria que este planeta cada vez menos azul usasse um termômetro mais sensível para medir o grau de desenvolvimento dos 195 países independentes que o integram. Algo como uma régua capaz de aferir se a condição humana recebe vitamina para desenvolver os seus plenos potenciais. A régua civilizatória - eis o que se propõe - teria função maior que a de medir o índice de desenvolvimento humano (IDH), que compara países por vetores da economia e qualidade de vida, com base numérica entre 0 e 1 (lembre-se que, nesse modelo, o Brasil registra 0,699, a 73.ª posição entre 169 países).
Nossa régua abrigaria todo o escopo dos direitos humanos fundamentais, a partir da pletora de valores éticos, morais e políticos, base da vida com dignidade, liberdade e igualdade. No compartimento político, por exemplo, o apetrecho seria aplicado para examinar a qualidade de costumes e práticas. Como estaria nossa esfera representativa? Seguramente, em maus lençóis, ganhando pontuação muito baixa numa escala de 0 a 100. Os rastros da velha política deixam-se ver por todos os lados. Amarras ao passado impedem avanços, basta olhar para a tão propalada reforma política. Quem nela acredita? Os entes partidários praticam um jogo de soma zero. O ganho de uns é a perda de outros.
Já no palanque, a expressão dos grandes atores causa arrepios: "Político tem de ter casco duro. Se tremer cada vez que alguém disser uma coisa errada sobre ele e não enfrentar a briga para dizer que está certo, acaba saindo mesmo". O ator/autor, Luiz Inácio, simplesmente sugere aos políticos envolvidos em escândalos reagir. Não baixar a cabeça.
O mandonismo, o caciquismo, o fisiologismo e o patriarcalismo, frutos da seara patrimonialista, continuam a escapar de seu tradicional reduto para se infiltrar em outros compartimentos institucionais. A perplexidade avulta. Não é outro o sentimento que se espraia por vertentes sociais ante situações surpreendentes, como a do Superior Tribunal de Justiça, que, de modo inusual, acelera a anulação de provas obtidas pela Polícia Federal. A recente decisão sobre a Operação Boi Barrica deixou uma interrogação no ar.
A bem da verdade, registre-se a boa avaliação da régua nos respeitados espaços do Supremo Tribunal Federal. Há bom tempo nossa mais alta Corte põe em pauta e decide sobre matérias de transcendental importância para a harmonia das relações sociais. Notas positivas, como se pode constatar, começam a aparecer no painel das decisões de impacto para a vida social. Veja-se essa Comissão da Verdade. Trata-se de instrumento que poderá propiciar ao País e a seu povo o encontro com sua verdadeira História. Contribuirá para a montagem do acervo de injustiças, agressões e violências aos direitos humanos. E servirá de alerta para que o Estado Democrático de Direito jamais se desvie de seu caminho.
A nossa régua civilizatória registra, por último, que o País tem passado por grandes transformações. As distâncias entre os estratos sociais da base e do meio da pirâmide diminuem. Mas sua medida para determinados setores (política, saúde, educação) continua sofrível. Pois o andar é vagaroso e cheio de tropeços.
O Brasil, esta é outra imagem, é submetido permanentemente a uma disputa de cabo de guerra: uns puxam para a frente e outros, para trás. O exército de vanguarda carrega o País para o futuro. O grupo de retaguarda sustenta os feudos do passado. Em nossas vitrines se veem as mais revolucionárias ferramentas do desenvolvimento e da tecnologia. A face moderna do Brasil quase potência. Ao lado da estética de Mogadíscio, de crianças sem forças para verter uma lágrima. Um território bárbaro. Um faroeste. Ainda longe da Pátria e da Nação, hábitat de civilidade, igualdade e dignidade.
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