JOSÉ CARLOS TÓRTIMA
O GLOBO
Na deslumbrada primeira visão da nossa terra, Pero Vaz de Caminha, o empolgado escrivão da frota de Cabral, não conteria a euforia ao anunciar, em sua célebre carta ao rei D. Manuel, que as águas da nova colônia eram não só muitas, mas "infindas". Talvez, no afã de abrandar o, sempre perigoso, desapontamento do soberano, que, indócil, aguardava notícias mais auspiciosas, sobre filões de esmeraldas e veios de ouro, Caminha estivesse a lhe oferecer uma espécie de prêmio de consolação, com as tais águas infinitas. Afinal, inaugurando a tradição nepotista que se incorporaria aos usos políticos do futuro país, o escriba, na mesma epístola, suplicaria ao rei o perdão para o genro, ex-tesoureiro da Corte, degredado por improbidade para a Ilha de São Tomé.
Só não imaginava ele que com sua bela carta de apresentação do Brasil aos nossos ancestrais lusitanos poderia estar lançando as sementes da arraigada e onipresente cultura de esbanjamento do precioso líquido e do mito de sua inesgotabilidade. Cultura esta que até hoje se faz presente nas cenas de desperdício explícito nas cidades e no campo. E também na timidez de políticas públicas direcionadas à preservação das reservas do mineral, tais como a de conservação dos lençóis freáticos, o combate à degradação das florestas, técnicas racionais de irrigação e a busca sistemática de Fontes alternativas de energia limpa, distintas das hidrelétricas, entre outras.
A sensação ainda dominante no espírito da maioria dos brasileiros, pela forma como lidam com a água, é que esta jamais faltará, como se sua demanda tivesse estagnado na época do descobrimento do Brasil. Poucos, pouquíssimos, governantes, parlamentares, ou mesmo cidadãos comuns, se importam com o desperdício de água. Talvez porque medidas que procurem coibi-lo, como a simples proibição da lavagem de calçadas no período de estiagem, não rendam votos. Se você perguntar ao seu vizinho de condomínio o que é a Anac, muito provavelmente ele haverá de responder que se trata da agência reguladora da aviação civil. Mas essa mesma pessoa dificilmente saberá o que significa a sigla ANA (Agência Nacional de Águas), autarquia federal incumbida do gerenciamento dos recursos hídricos.
A precária percepção entre nós sobre a importância do uso racional da água, cuja escassez já desencadeou conflitos armados em outras partes do mundo e tem dado alento a inquietantes teses de internacionalização de regiões com abundância do mineral, é desoladora. A onda ecológica que atravessou o Atlântico para empolgar o discurso politicamente correto em terras brasileiras corre o risco de ficar só no discurso, se não resultar num sério esforço, irmanando governos e sociedade civil, de conscientização sobre o correto e escrupuloso aproveitamento e uso da água. Algo que transmita às pessoas, definitivamente, a ideia de que nossas águas são, por enquanto, abundantes, mas não infinitas, e que sem elas a vida será um inferno.
JOSÉ CARLOS TÓRTIMA é advogado.
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