ELIO GASPARI
FOLHA DE SP
Saiu nos Estados Unidos o pacote de sete longas entrevistas que Jacqueline Kennedy deu ao historiador Arthur Schlesinger Jr. em 1964, poucos meses depois do assassinato de seu marido. É um retrato de uma grande mulher, dona de um vontade de ferro e imbuída de um raro sentido da História, escondida atrás de uma delicada aparência de refinada futilidade. Lia melhor que o marido, guardava até rabiscos e tinha um fino senso de humor: "'Primeira-Dama' parece nome de cavalo de corrida".
Até a sua morte, em 1994, aos 65 anos, Jackie deu apenas três entrevistas. Na primeira, dias depois do assassinato de Kennedy, criou o mito de "Camelot", a lenda de cavalaria medieval semelhante, em sonho, ao governo de seu marido. A segunda saiu do cofre agora. A terceira só será conhecida em 2067.
Jackie sofrera como poucos. O pai (que ela adorava), tomou um porre e não apareceu na cerimônia do seu casamento. Morrera-lhe um filho com poucos dias de vida e, em Dallas, teve os miolos do marido espalhados no vestido.
Nas sete conversas de 1964, Jacqueline falou para o século seguinte. John Kennedy não tinha defeitos e seu papel fora servi-lo. Uma Amélia chique. Ao contrário do que se esperava, a cama da Casa Branca ficou fora da pauta. Há apenas uma breve referência a um adversário político que se orgulhava de jogar squash e fazer sexo uma vez por semana, numa insinuação sobre a saúde débil de Kennedy. Ela contou o caso e gargalhou, junto com Schlesinger. ("Jacqueline Kennedy -- Historic conversations on life with John F. Kennedy" vem junto com seis CDs. O pacote está na Amazon e nos Estados Unidos o e-book pode ser baixado por US$ 9,99. Ouvir Jackie com sua adorável e afetada língua presa é um bálsamo para quem convive com a sonoplastia de Lula.)
Kennedy chorou nos dias seguintes à fracassada invasão de Cuba, em 1961, quando 2.500 exilados da força expedicionária foram capturados pelas tropas castristas. Sua descrição dos prisioneiros quando retornaram, trocados por tratores, mostra a alma da senhora: "Eles tinham uns rostos maravilhosos, como os de El Greco. Muito magros."
Jacqueline conta a crise dos mísseis soviéticos colocados em Cuba com alguma emoção. Nunca o mundo esteve tão perto da Terceira Guerra, mas Kennedy só lhe contou o rolo quatro dias depois de seu início. Ele não sugeriu que deixasse Washington, mas ela pediu para ficar. (Em Moscou, alguns familiares da nomenclatura viajaram.)
A moça criada na Nova Inglaterra, lapidada na França e casada numa família de milionários primitivos, lustrou a biografia liberal de Kennedy, mas tropeçou em dois personagens. E que personagens: Franklin Roosevelt e Martin Luther King.
A respeito de Roosevelt, relembrou:
"Ele (Kennedy) às vezes o considerava um charlatão - charlatão é uma palavra injusta, e você entende o que estou dizendo, um pouco poseur, esperto."
Com Martin Luther King a coisa piora: "Ele me contou de uma gravação do FBI de quando King esteve aqui para a Marcha da Liberdade (a do discurso do "eu tive um sonho"). (...) Ligava para umas garotas, armando uma festa de homens e mulheres, uma orgia no hotel. (...) Eu não posso ver retratos dele sem pensar, sabe, aquele homem era horrível." (Kennedy, cuja cama já fora grampeada, tentou intimidar King com a "vigilância" do FBI, mas ele se fez de bobo.)
No dia 16 de outubro o companheiro Obama inaugurará o memorial de King em Washington, onde há monumentos a Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e Roosevelt.
A conta do golpe foi para Lyndon Johnson
Amaestria de Jacqueline Kennedy na construção e na propagação do mito de seu marido pode ser comprovada numa referência que faz ao Brasil em sua entrevista.
A certa altura ela diz que Kennedy achava que João Goulart era "falso" e "ladrão". Nessa conversa, ocorrida em junho de 1964, ela recorda que "os Estados Unidos reconheceram a junta do Brasil muito rapidamente. (...) Uma desilusão. (...) Jack nunca teria feito isso."
A família e a equipe de Kennedy desprezavam o vice-presidente Lyndon Johnson e, depois de Dallas, trataram-no como se fosse o primeiro-ministro da União Soviética, mas essa conta não é dele. É de "Jack".
A carta do golpe militar no Brasil foi colocada no baralho no dia 30 de julho de 1962, durante uma reunião do presidente Kennedy com o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. (Nesse dia ele começou a gravar suas conversas no Salão Oval, inclusive essa.)
Em setembro, o Departamento de Estado aprontou um documento, intitulado "Proposta de política de curto prazo: Brasil". Ele propõe o "rápido reconhecimento e apoio a qualquer regime que os brasileiros instalem, substituindo Goulart". (Os Estados Unidos reconheceram o novo governo no dia 2 de abril, enquanto João Goulart ainda estava no Brasil.)
Nos últimos meses do governo Goulart, Arthur Schlesinger, que trabalhara com Kennedy, escreveu o seguinte: "Chegará o momento em que teremos de perguntar se é do nosso interesse que Goulart continue a cambalear até o fim do seu mandato, em 1965, (ou se) fosse 'aposentado' antes da data marcada".
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