domingo, 25 de setembro de 2011

Entre Pangloss e Cassandra


MARCELO DE PAIVA ABREU
O Estado de S.Paulo

Há alguns meses o espírito de Pangloss, o personagem de Voltaire que só era capaz de ver razões para continuar otimista, dominava a maioria das avaliações sobre a economia do Brasil - avaliações reforçadas por diagnósticos internacionais que pareciam querer compensar o excesso de pessimismo no passado com excesso de otimismo em relação ao futuro. A capa da The Economist com o Cristo Redentor envolto em nuvens cinzentas no início de 1999 (Storm clouds from Brazil), em meio à crise cambial, custou a ser substituída por visão menos catastrófica. E, certamente, a capa do final de 2009, com o Cristo sendo propelido por um foguete (Brazil takes off) parece agora bem exagerada, subestimando os inúmeros obstáculos à retomada do crescimento econômico acelerado e sustentado.

Menos Pangloss e mais Cassandra - figura mitológica hoje associada ao pessimismo - é o que parece sugerir a disseminação de iniciativas recentes nos Três Poderes da República.

Iniciativas do Poder Judiciário indicam percepção inadequada de restrições orçamentárias e falta de sensibilidade quanto aos anseios da sociedade civil e à capacidade institucional de fazer justiça de forma equilibrada e expedita. É preocupante que as postulações salariais sejam acompanhadas por esforços de preservação de regalias quanto a direitos trabalhistas e que tenham como pano de fundo a constatação de que há ações judiciais pendentes de decisão que estão comemorando o 50.º aniversário. E que, no contexto de negociações salariais do Judiciário, sejam invocadas razões ancoradas na independência de Poderes. Com o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) definindo o teto salarial do funcionalismo público nos Três Poderes, o impacto sobre as contas públicas seria desastroso.

Quanto ao Poder Legislativo, pouco há a acrescentar a um diagnóstico que sublinhe o colapso de aderência mínima a princípios éticos que se constata com base nas práticas fisiológicas de políticos na administração pública e pelo esprit de corps maligno, evidenciado em votação secreta sobre a cassação de deputada acusada de corrupção. O único consolo é que tal diagnóstico da sociedade civil quanto ao modus operandi do grosso da classe política não configura novidade, especialmente desde que o PT dominou a tecnologia de administração de coalizões fisiológicas no início do governo Lula.

Iniciativas do Poder Executivo estimularam mais ainda a crescente desconfiança quanto às bases concretas que poderiam justificar a persistência de otimismo com a economia do País. A decisão do Banco Central (BC) de reduzir a taxa Selic, alegadamente lastreada em diagnóstico pessimista sobre a evolução da economia mundial, preocupa menos do que as reações que suscitou. Diversos ex-ministros da área econômica, com ampla experiência em épocas em que decididamente não se podia falar de autonomia do BC, manifestaram seu regozijo com a decisão, pois configuraria a reestatização do BC e teria sacramentado o fim da crença em modelos monetários. Nesse coro de congratulações, não faltou quem sublinhasse que decisões de política monetária envolvem mais "arte" que ciência, ao contrário do que defendem "sacerdotes" indevidamente comprometidos com o setor financeiro.

Há pelo menos dois problemas com tais análises. O primeiro é que foram exatamente ministros que no passado promoveram a aceleração inflacionária ou fracassaram em tentativa de estabilização - nos dois casos, com crescimento medíocre - que demonstraram mais entusiasmo com a audácia da política econômica atual de privilegiar o crescimento em detrimento do regime de metas.

Terá faltado "arte"? É oportuno lembrar Laurence Peter, do Peter Principle: "Só há uma coisa mais penosa do que aprender com a experiência: é não aprender com a experiência". Tudo o mais constante, acho que, às opiniões de sacerdotes enfáticos da hiperinflação com estagnação, prefiro o que Pedro Malan, Gustavo Franco, Ilan Goldfajn, Afonso Bevilaqua, Alexandre Schwartzman, Eduardo Loyo e Mário Mesquita, entre outros, têm a dizer sobre o assunto. Afinal, tiveram sucesso no controle da inflação, com algum crescimento.

O segundo problema são as alegações de que a Selic tem sido mantida em níveis elevados porque isso interessa ao setor financeiro. Trata-se de questão empírica sobre a qual não há evidência clara. Mas, em qualquer caso, a ninguém ocorreria sugerir que o setor financeiro deixa de tratar da melhor maneira possível a defesa dos seus interesses. Mas isso não é sua característica exclusiva. Da mesma forma agem os industriais ou seus áulicos que defendem sistematicamente proteção alta, ou generosos créditos públicos subsidiados, ou Selic reduzida, ou câmbio desvalorizado. É um mundo sem anjos.

A notória deterioração da governança mundial e o aumento da probabilidade de recrudescimento da crise mundial - na esteira da nova recessão nos EUA, das tensões da zona do euro e do arrefecimento do crescimento chinês - deveriam servir de estímulo para que o Brasil evitasse a adoção de políticas imprudentes ou simplesmente equivocadas. Os custos dos erros estão em alta.

DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, É PROFESSOR TITULAR NO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
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