J. R. GUZZO
Revista Veja
Houve um tempo em que existiam coisas certas e coisas erradas. As coisas certas eram o contrario das coisas erradas, as coisas erradas o contrário das coisas certas, e ninguém precisava recorrer à Corte Internacional de Haia ou consultar comissões de ética para saber a diferença entre umas e outras. Na vida pública brasileira, ao longo dos últimos anos, surgiu uma terceira categoria: as coisas que não têm nada a ver. À primeira vista elas parecem tão erradas quanto o pecado original, mas, depois que recebem o carimbo de "nada a ver", passam a desfrutar de absolvição automática e integral. Transformam-se imediatamente em atos corretos, ou pelo menos neutros: o que não se admite, em nenhuma hipótese, é que possam estar errados. Esse tipo de pirueta faz um sucesso cada vez maior no mundo oficial, sempre que alguém tem de explicar uma situação enjoada. O resultado é que o Brasil, hoje em dia, é o país do nada a ver. Funciona assim, por exemplo: um peixe graúdo da administração pública, desses que estão em um dos 25000 empregos para os quais as supremas autoridades da República podem nomear quem bem entenderem, tem um parente próximo (mulher, irmão, filho etc.) que é dono de alguma empresa; essa empresa, por sua vez, ganha do governo contratos para lhe vender produtos, prestar serviços ou construir obras, às vezes diretamente na área dirigida pelo alto burocrata em questão. Na época das coisas certas e erradas, algo assim era considerado quase uma piada, em matéria de erro; só os espíritos mais audaciosos, ou desesperados, teimavam algo parecido. Não mais. Hoje, quando se dá um flagrante desses, a posição oficial do governo é dizer que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sim, o dr. Fulano ocupa a posição tal; sim, a empresa dos seus familiares recebe dinheiro do governo, para fornecer isso ou aquilo - e daí? Sua mulher, irmão, filho etc, têm todo o direito de assinar contratos com a administração. Trata-se de empresários como quaisquer outros. Participam de licitações públicas. Proibi-los de fazer negócios com o governo seria discriminação, a fato de ganharem o contrato não tem nada a ver com o fato de que há um marido, irmão, pai etc, no governo. Caso encerrado.
Ninguém mais está disposto a perder muito tempo, atualmente, montando esquemas complicados para esconder seus "malfeitos", como diria a presidente Dilma Rousseff. Basta prestar um pouco de atenção às "organizações não governamentais" que os políticos utilizam para tocar seus negócios. Nada mais simples. Um parlamentar faz aprovar pelos colegas uma emenda mandando esse ou aquele órgão do governo entregar alguns milhões de reais a uma ONG, que em troca do dinheiro recebido se encarregaria de prestar serviços ao poder público; uma das fórmulas preferidas, no momento, é dar "treinamento". Treinamento para quê, ou para quem? Tanto faz: qualquer invenção serve, pois ninguém vai treinar ninguém para nada. A única providência que realmente interessa é entregar a verba à ONG escolhida. Ela vai repassá-la a uma empresa-laranja, à qual caberia fazer o treinamento previsto na emenda; nenhuma tarefa é executada e o dinheiro some no espaço, sem deixar vestígio. Quando o fato é descoberto, o parlamentar responsável pela trapaça diz que uma coisa - a sua emenda - não tem nada a ver com a outra - o sumiço da verba. Tudo o que ele fez foi providenciar os recursos. Não lhe cabe fiscalizar sua aplicação - se no meio do caminho meteram a mão no dinheiro, o que ele tem a ver com isso?
A filosofia do nada a ver tem mil e uma utilidades. Serve para permitir, por exemplo, que um grande escritório de advocacia pague diárias num hotel de luxo na ilha de Capri - isso mesmo, Capri - a um ministro do Supremo Tribunal Federal. O STF não poderia julgar causas patrocinadas pelo tal escritório? Poderia, é claro. Mas as duas coisas não têm nada a ver entre si; segundo o ministro em questão, trata-se de um "assunto pessoal". O nada a ver também serve para que grandes eminências da política nacional viajem em jatinhos de empreiteiras, banqueiros e outros magnatas - ou que recebam deles até 500000 reais para lhes fazer uma palestra. Que problema poderia haver nisso?
A consciência do homem público brasileiro, hoje em dia, é algo que se satisfaz com pouco. É como o camelo: basta lhe dar aquele ramo de água e o bicho atravessa um deserto inteiro, sem reclamar de nada. No Brasil de 2011 é preciso cada vez menos para explicar que o erro não está errado. É só dizer: "Nada a ver".
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