O Estado de S.Paulo
Uma regra não escrita do jornalismo, para valorizar o inusitado sobre o esperado, diz que "cachorro que morde homem não é notícia, mas homem que morde cachorro é". Por esse critério, à primeira vista não seria notícia a denúncia de um ex-juiz da Suprema Corte da Venezuela sobre a interferência sistemática do governo Hugo Chávez nas decisões judiciais. Isso, de fato, não surpreende, tendo em conta o muito que já se sabe a respeito do controle autocrático exercido pelo caudilho sobre as instituições venezuelanas. Desconcertante e digna de manchetes seria a descoberta de que o chavismo passou a incentivar, ou ao menos respeitar, a autonomia dos tribunais do país - que forma com a liberdade de imprensa e a realização de eleições periódicas, livres e limpas o tripé em que se assentam as verdadeiras democracias.
Mas o relato de Eladio Aponte Aponte é notícia por desmontar a farsa chavista de que o regime do "socialismo do século 21" combate sem quartel o comércio da droga. O inexpressivo advogado militar, hoje com 63 anos, se beneficiou dos expurgos promovidos por Chávez em seguida à fracassada tentativa de golpe contra ele há dez anos para ascender na carreira até chegar à vice-presidência do mais alto tribunal do país, de onde foi destituído no mês passado pela Assembleia Nacional sob a acusação de acumpliciar-se com um presumível traficante. As afirmações de Aponte são certificadas pelas próprias confissões de sua submissão, anos a fio, aos ditames do Palácio Miraflores, a sede do governo venezuelano. Seria mais honroso para a sua biografia se ele não tivesse esperado cair em desgraça para expor os bastidores da Justiça bolivariana. Mas isso não reduz a gravidade de suas revelações.
Segundo a versão oficial, ele perdeu o cargo por ter autorizado a emissão de um documento especial de identidade para o empresário venezuelano Walid Makled, processado a portas fechadas sob suspeita de liderar uma gangue da droga e de lavagem de dinheiro. Aponte admite que conhecia Makled, mas não as suas atividades ilícitas quando liberou o documento. Há duas semanas, o ex-juiz fugiu para a Costa Rica, onde - significativamente - procurou a DEA, a agência norte-americana que comanda a repressão ao tráfico de entorpecentes. Levado aos EUA, ele deu uma entrevista bomba à Sol TV de Miami, em língua espanhola. Alegando ter acreditado no "processo revolucionário" em seu país, admitiu que dava sentenças como queriam os seus controladores do Executivo, identificando-os.
O vice-presidente Elías Jaua, apontou, participa das reuniões semanais do alto escalão chavista com juízes e promotores, que reduziram a Justiça venezuelana a "massa de modelagem". Certa vez, em 2004, o próprio Chávez lhe telefonou para recomendar que conduzisse "de maneira conveniente" o processo dos paramilitares colombianos presos em Caracas por alegada conspiração contra o governo. Ele diz ter recebido ordem também para soltar o tenente-coronel Pedro Maggino, preso sob a acusação de traficar duas toneladas de cocaína. Chávez tinha uma forte razão pessoal para proteger o militar. Ele tinha sido segurança de Elena Frías, mãe do caudilho. A intromissão dá a medida da leniência do autocrata com o narconegócio. Diversos militares venezuelanos, a começar do ministro da Defesa Henry Rangel, estão na lista negra dos EUA a esse título.
Também nisso Chávez segue os passos do seu nume tutelar, Fidel Castro, que autorizou os compañeros a mercadejar drogas e armas na África e serviu de inspiração para a narcoguerrilha das Farc na Colômbia. Em Cuba, o negócio terminou da pior forma para um dos chefes da operação, o general Arnaldo Ochoa Sánchez. Membro da cúpula do PC cubano e designado Herói da Revolução em 1984, Ochoa foi fuzilado cinco anos depois como "traidor" - desentendeu-se com Fidel sobre o tráfico. Na Venezuela, Aponte deixou claro na sua entrevista, os militares desempenham papel central na manipulação do Judiciário. Ironicamente, ele próprio é general da reserva.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário