Nico Graziano
O Estado de S. Paulo
O Brasil realizou a maior reforma agrária do mundo. Poucos, entretanto, acreditam nesse feito. Tal percepção negativa é influenciada pelo discurso que valoriza a quantidade em detrimento da qualidade dos assentamentos rurais. Idealismo irresponsável.
De 1994 a 2011, mostra com exatidão o Incra, foram assentadas no País 1.176.813 famílias, distribuídas numa área de 88 milhões de hectares. Para aquilatar a grandeza dos números basta citar que existem em São Paulo 227 mil estabelecimentos agropecuários (IBGE, 2006), explorando 16,7 milhões de hectares. Conclusão: a reforma agrária brasileira já é cinco vezes maior que a agricultura paulista.
Os processos históricos de reforma agrária foram distintos nos vários países, impedindo precisas comparações. Stalin expropriou as terras dos czares russos e coletivizou a agricultura ao custo de 6 milhões de mortes. O México perdeu 1 milhão de vidas na época revolucionária de Zapata, dividindo posteriormente 70 milhões de hectares para os ejidos cooperativos. Finda a 2.ª Guerra Mundial, em 1946 os norte-americanos tomaram as posses feudais japonesas e as dividiram em lotes de um hectare para os camponeses. Minifúndios.
Com territórios pequenos, Cuba, Chile, Peru, Bolívia promoveram reformas cujas dimensões ficam muito aquém da brasileira. A área distribuída nos assentamentos rurais do Brasil excede a própria área cultivada do País, de 70 milhões de hectares (excluindo pastagens). A França explora 30 milhões de hectares.
Se houvesse um ranking mundial da reforma agrária, o Brasil certamente o lideraria. Na dimensão. Porque na eficácia ocuparia os derradeiros lugares. Aqui mora o problema. A qualidade dos assentamentos rurais configura um fracasso na política pública. Fora as exceções de praxe, verdadeiras favelas rurais se espalharam pelo País.
Uma criteriosa pesquisa realizada pelo Incra (2010) coletou informações básicas sobre modo de vida, produção e renda das famílias assentadas. Questionários foram respondidos por uma amostra de 16.153 beneficiários, envolvendo 1.164 projetos de reforma agrária. Só 32,6% das moradias contam com iluminação elétrica regular, em 57% dos lotes as estradas de acesso são péssimas ou ruins, a saúde pública mal chega a 56% das famílias. Na média.
Números são chatos, mas necessários às vezes para convencer incrédulos. O drama das famílias assentadas começa cedo: 38% delas jamais receberam o apoio inicial para soerguer sua existência na roça. Despejadas no lote sonhado, viraram-se por conta própria. A assistência técnica (fomento) chegou apenas a um quarto dos assentados; metade deles nunca viu financiamento do Pronaf e, dos que receberam empréstimos, 38% estão inadimplentes no Banco do Brasil.
O relaxo, ou incapacidade, do governo em amparar os novos produtores, aliado à inaptidão da maioria das famílias assentadas, se reflete nos rendimentos. No Ceará 70% dos assentados auferem uma renda total mensal que não ultrapassa dois salários mínimos. Com um agravante: 44% do ganho familiar advém dos benefícios sociais do governo. Tragédia rural nordestina.
Sim, é verdade, a qualidade de vida dos assentados melhorou, quando se compara antes e depois do assentamento. Após anos de tutela do Estado, só faltava ter piorado sua existência material. Mas vejam os dados da pobreza agrária: apenas em 63% dos lares existe televisão, só em 45% deles se bate bolo no liquidificador, a 30% não chegou fogão a gás. Singelo lar, distante da cidade, longe dos amigos.
Nada, entretanto, mais surpreende o estudioso que descobrir o buraco negro da reforma agrária: ninguém sabe qual a produção agropecuária oriunda dos assentamentos. Por incrível que pareça, inexiste estatística agregada sobre o volume de grãos, das frutas ou dos rebanhos capaz de determinar sua contribuição à safra agrícola nacional. Parece mentira.
Existem bons trabalhos, notadamente realizados pelas universidades, enfocando casos específicos, às vezes generalizando estimativas. Faltam dados governamentais, de campo, que permitam avaliar o resultado produtivo da reforma agrária. Análise de custo/benefício nunca foi o forte do agrarismo populista, como se o simples acesso à terra fosse um passaporte para a felicidade eterna.
Tornar os assentamentos rurais viáveis ganhou destaque no discurso de Dilma Rousseff ao empossar recentemente o gaúcho Pepe Vargas no Ministério do Desenvolvimento Agrário, em substituição ao baiano Afonso Florence. Disse a presidente, com todas as letras, que "reforma agrária não é só distribuição de terra, mas garantia das condições de desenvolvimento para as populações que acessem essas terras". Foi mais longe: "De nada adianta distribuição de terra com permanência das populações rurais na extrema pobreza". Recado certo.
A troca do titular da pasta que comanda o Incra ocorreu em meio às críticas sobre o baixo desempenho nos assentamentos em 2011. Apenas 22 mil famílias receberam um quinhão da reforma agrária, o menor número dos últimos 16 anos. Na ótica da quantidade, péssimo. Na visão da qualidade, porém, o ministro demitido saiu injustiçado. Assentar pouco pode ser virtude, não defeito.
Mais que girar a rosca sem-fim importa garantir qualidade produtiva à reforma agrária. Deveria haver uma norma - lei da responsabilidade agrária - que obrigasse o poder público a emancipar os projetos antigos antes de iniciar os novos. Consolidado o assentamento, com moradia decente, transporte regular, assistência técnica, integração produtiva, os recém-"com-terra" seriam titulados.
Escritura na mão, alforria no campo.
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