Nilson do Rosário Costa
Valor Econômico
É recorrente a indignação face à baixa qualidade dos serviços públicos sociais no Brasil tendo em vista a elevada carga fiscal - mais de um terço do Produto Interno Bruto (PIB) - do país. No artigo "Esclarecendo o Debate Fiscal" (Valor, 6/2/2012), Mansueto Almeida afirma que esses serviços "estão aquém do desejável". No livro "Brasil: A Nova Agenda Social", de 2011, Edmar Bacha e Alexandre Schwartzman falam em níveis de atendimento do setor "precários do ponto de vista de uma sociedade moderna". Por que os serviços públicos sociais não melhoram apesar da forte pressão da opinião pública? Serão eles estruturalmente imprestáveis? Obviamente que não. Na realidade, as críticas difundem uma visão responsável, porém simplificada das múltiplas e complexas funções do setor social do país que condicionam o seu papel na prestação adequada de serviços públicos.
A maioria das análises não esclarece que os governos têm prioridades e escolhas em relação aos tipos de intervenção social. A literatura da economia do bem-estar social tem o cuidado de separar as instituições de política social em duas grandes modalidades: transferência de renda e prestação de serviços. Aplicando a tipologia ao Brasil, na primeira modalidade ficam as instituições que concentram as despesas governamentais destinadas à previdência social, Bolsa Família, LOAS, seguro-desemprego e abono salarial. Na segunda, as instituições das áreas associadas à prestação direta de serviços em hospitais, ambulatórios, postos de saúde, escolas, universidades, etc. Os dados na tabela mostram que a última década tem consolidado e ampliado o padrão de intervenção social na modalidade "transferência de renda" em detrimento do financiamento relativo às áreas de prestação de serviços públicos, como saúde e educação. Em 2010, a cada R$ 100 destinados às despesas sociais no governo federal, R$ 81 foram para a transferência de renda monetária. Não pode ser ignorado o constrangimento que a opção preferencial em transferir renda em vez de desenvolver a capacidade organizacional da prestação pública produz sobre a qualidade dos serviços sociais.
A escolha pela entrega de renda monetária direta a aposentados, pensionistas ou familiares contemplados pelo Programa Bolsa Família teve um impacto redistributivo virtuoso e inquestionável. Mas não só isso: a intencional centralização da execução financeira da transferência de renda no governo federal possibilita a geração de dividendos políticos relevantes pela identificação entre o benefício específico - o montante de reais na conta individual do cidadão-eleitor - e o executivo. Essa equação explica porque o executivo federal reivindica ferozmente a paternidade da decisão de criação de novos programas e aumento do valor real das intervenções sociais que transferem renda. O interessante texto de Hunter & Power "Rewarding Lula: Executive Power, Social Policy, and the Brazilian Elections of 2006", que demonstra o ganho eleitoral associado ao Programa Bolsa Família, ratifica esta tese.
Não se pode esquecer, portanto, que a prestação de bons serviços sociais públicos não esteve na agenda de prioridades do governo federal nos anos recentes. Um bom exemplo está no campo da saúde pública: volume de recursos federais destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS) foi proporcionalmente declinante nos últimos anos no âmbito da federação. Causa espanto que o governo federal tenha produzido com enorme sucesso a transferência do ônus do financiamento da área para os governos Estaduais e municipais. Entre 2000 e 2008, a participação percentual do governo federal no financiamento da saúde caiu de 60% para 45,5%. Mesmo assim, no período, o governo incentivou a ampliação da Estratégia de Saúde da Família com menos de 10% dos recursos financeiros do Ministério da Saúde. O ônus real da expansão bem sucedida da atenção primária no Brasil ficou para os municípios! A parte do leão do financiamento federal na saúde ainda é destinada aos hospitais e institutos federais de pesquisa de grande porte e complexidade. Estes permanecem operando na zona de conforto, ou seja, à margem de qualquer avaliação de desempenho e responsabilização nas decisões de prestação de serviços e investimento. A demanda de serviços públicos sociais mais eficientes e de qualidade pode ser menos difusa e inespecífica, olhando com mais rigor a trajetória silenciosa e pouco transparente das grandes organizações federais. Feito esse elementar dever de casa, ainda assim será inevitável a demanda por maior responsabilidade financeira do governo federal com os serviços na área social.
Nilson do Rosário Costa é pesquisador da Fiocruz na área de políticas públicas e saúde.
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