domingo, 9 de dezembro de 2012

A classe média pega em armas


Leôncio Martins Rodrigues
O Estado de S. Paulo 


Acabo de ler a biografia Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, de Mário Magalhães (Companhia das Letras, 2002, 732 pp.). Além de ser o melhor relato da luta armada no Brasil no período do autoritarismo militar, apresenta muita informação sobre a história do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da política brasileira. Suscita muitas reflexões sociológicas sobre a luta política revolucionária. Mais especificamente: de que meios sociais provêm os militantes que pretendem dirigir o povo, o proletariado ou o campesinato na luta contra os opressores capitalistas ou latifundiários? Na Europa civilizada, a luta pelo socialismo estava ligada à classe operária, a classe guia. Sindicatos de trabalhadores estavam controlados pelos social-democratas. Havia uma liderança operária ao lado de intelectuais revolucionários, como o próprio Marx.

Lenin, porém, nunca acreditou que os operários, "deixados a eles próprios", iriam mais adiante do que uma consciência sindical. O socialismo viria de fora do proletariado. Seria uma construção de intelectuais revolucionários. As revoluções seriam obra das massas, mas dirigidas por uma minoria de revolucionários profissionais. Na sua maioria eram de classe média. Havia também alguns aristocratas decadentes ou burgueses desajustados em sua classe. E muitos judeus.

Os desenvolvimentos posteriores deram razão a Lenin, e não a Marx. Os operários acomodaram-se à ordem capitalista afluente, suas lideranças sindicais ascenderam no sistema político das democracias de massas. A partir da 1.ª Guerra, mais e mais setores de classe média se radicalizaram. Distribuíram-se entre o bolchevismo e o fascismo, ambos contra a ordem burguesa liberal.

A contestação ao mundo democrático capitalista ganhou dimensões mais nítidas a partir da década de 1970. Em especial nas franjas ocidentais do capitalismo, segmentos jovens de classe média intelectualizada lançaram-se à destruição da ordem imperialista e de seus lacaios nacionais. Pouco a pouco, afastaram-se inteiramente das massas. Passaram a confiar na força das armas. É verdade que nem todas as organizações de esquerda - no Brasil, o partidão e seus desafetos trotskistas - acreditaram na ilusão guevarista. Mas um número grande de jovens, em geral neófitos na militância partidária, aderiu com entusiasmo à luta armada. A cidade ou o campo poderiam ser o cenário principal.

"Mariga", para os experts, acreditava numa variante do modelo chinês: a revolução começaria no campo, porém sob a forma de guerrilha, como em Cuba. "As plantações dos fazendeiros devem ser queimadas, o gado dos grandes pecuaristas, dos frigoríficos, das invernadas deve ser expropriado e abatido para matar a fome dos camponeses (...), os grileiros e os norte-americanos proprietários de terra devem ser tocaiados e mortos, assim como os capangas dos fazendeiros." Para preparar a guerrilha agrária dominicanos foram encarregados de um levantamento estratégico no Brasil Central.

As ações concretas, contudo, limitaram-se ao meio urbano. Foram antes de tudo atos de terrorismo (para desmoralizar a ditadura militar) e assaltos a bancos (para sustentar os aparelhos e militantes clandestinos). Eram principalmente estudantes, alguns secundaristas, ansiosos para pegar em armas. Muitos foram para Cuba, para treinamento militar e de guerrilha.

Alguns vinham de família de classe alta, de círculos politicamente dominantes, faculdades e estabelecimentos de ensino importantes, como o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. As redes de apoio incluíram ricos empresários, médicos, psiquiatras, artistas, poetas e outros profissionais de relevo: abrigavam feridos, escondiam armas e emprestavam automóveis. Alguns até mesmo serviram de motorista para Carlos Marighella. A atração pela revolução, palavra mítica, e por seus chefes admirados sempre rondou minorias dissidentes das classes altas.

No caso da Aliança Libertadora Nacional, ou Ação de Libertação Nacional (ALN), o recrutamento principal, fica evidente pela pesquisa de Mário Magalhães, foi entre os jovens das classes médias intelectualizadas e das classes altas, muitos dos quais de famílias tradicionais de nossa intelligentsia. Mas eram minorias no conjunto dessas categorias socioprofissionais. Operários, camponeses e dirigentes sindicais não quiseram saber nada com a ALN.

O aspecto que nos parece mais destoante, se olharmos o passado de outros países, é a forte relação dos dominicanos com a ANL, fato que pode ser explicado pela mudança da orientação da Igreja Católica, ou seja, a opção preferencial pelos pobres.

Uma última observação provocadora, mas não equivocada: em muitos pontos, excetuando a ideia da guerrilha rural, os militantes da Ação de Libertação Nacional, embora não o soubessem, estavam próximos do fascismo italiano, particularmente do primeiro fascismo, o dos Fasci di Combattimento, que precedeu a criação do Partido Nacional Fascista. Predominavam na ANL, além do nacionalismo, o culto da ação, do heroísmo, a rejeição da política, o voluntarismo, o romantismo, a exaltação da violência, o encanto pelas pistolas e metralhadoras, o recrutamento na juventude, a rejeição total do "legalismo" burguês. Essa linha, da valorização do pequeno grupo, das minorias militantes que não esperam chegar a vez, tem uma longa história na história da esquerda. Sempre dividiu "reformistas" e "revolucionários", moderados e radicais. Os primeiros confiavam nos Parlamentos, no voto, nos eleitores, nas transformações graduais. Os segundos, na disposição revolucionária dos pequenos grupos, no triunfo da vontade. Mas essa conclusão é minha. Derivou da leitura prazerosa do livro de Mário Magalhães, que se limitou a relatar os fatos de modo objetivo e bem fundamentado.
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