quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Indultos, impeachment etc.



RENATO JANINE RIBEIRO
VALOR ECONÔMICO 


Esta segunda-feira, o Supremo Tribunal Federal, em que pese a retórica de alguns de seus membros, infringiu a Constituição, cuja guarda lhe incumbiria. Não interessa aqui discutir se o artigo 55 dela é justo ou não, bom ou não; ele determina que um parlamentar só perde o mandato, em decorrência de condenação judicial, com o endosso da casa legislativa à qual ele pertence. Tal regra é estranha, pois pode permitir que sentenças judiciais não sejam cumpridas. Mas o fato é que ela está na Constituição. Os ingleses e canadenses, por exemplo, se indignam não apenas com as injustiças, mas com o descumprimento da lei. Mude-se a lei, se com ela não concordarmos. Mas mude-se pelo processo correto, que é o voto pelos representantes eleitos do povo. O que o Supremo fez esta semana foi invadir a competência dos dois Poderes eleitos, os dois Poderes legitimados pelo voto do soberano, que é o povo. Isso é grave, não só porque é errado do ponto de vista político, ético e constitucional, mas também porque pode prenunciar ataques ao voto popular.

Nada impediria que no futuro o Supremo, alegando por exemplo cláusulas gerais da Constituição, como o respeito à moralidade (art. 37), decidisse, por exemplo, cassar um candidato eleito, por ter vagamente violado um preceito moral do gosto dos juízes, até mesmo na sua vida privada. E isso pouco importando se ele foi eleito pelo povo. A Corte Suprema já tolerou a substituição do governador tucano da Paraíba e do governador pedetista do Maranhão, ambos cassados, pelos candidatos que eles haviam derrotado. Já sustentei aqui que o STF é bom nos direitos humanos mas entende pouco de democracia: jamais um candidato vencido em eleição majoritária poderia tomar posse. Some-se a isso a decisão monocrática do ministro José Fux, impedindo o Congresso de votar um veto presidencial. Não está certo o Judiciário impedir o povo ou seus eleitos de decidir questões políticas.

Se o Supremo não garante a Constituição, mas escolhe nela o que vale e o que não, isso pode abrir lugar para reações que seria melhor não ocorrerem. Em algum momento, é possível que se peça o impeachment de algum ministro do Supremo. A Constituição prevê essa possibilidade. Começa com a denúncia sendo aprovada pela Câmara, que remete o julgamento ao Senado, que portanto atua como tribunal. Dado que o Senado só pode sentenciar por dois terços de seus membros, nenhum ministro do STF será condenado por crime de responsabilidade. Mas, se tal processo ocorrer, não será bom para ninguém. Acusações ressoarão no plenário do Congresso. As coisas podem piorar se, num tal processo, o Supremo decidir regulamentar como o Senado deverá proceder. O STF, como intérprete da Constituição, interviria na economia interna do tribunal que estará julgando um de seus membros.

Outra reação, mais viável, seria uma emenda constitucional limitando a ação do STF em matéria política. Tal medida nada teria de anti-democrática. Ao contrário, garantiria que a vontade do povo prevaleça sobre as simpatias de magistrados não eleitos mas que interfiram nas decisões dos eleitos. Já se falou numa emenda tal, esta semana. Mas o STF tem dado indicações de acreditar que possa invalidar partes da Constituição, e poderia anular uma emenda constitucional que limitasse seus poderes. Isso o constituiria como poder supremo na República, acima dos outros e do povo, que deixaria de ser soberano: nova e maior crise.

Finalmente, outro elemento que pode surgir da caixa de Pandora que o Supremo desnecessariamente abriu nos últimos dias é o do indulto presidencial a réus do mensalão. O indulto é um direito absolutamente inconteste, em nosso ordenamento constitucional, da Presidência da República. É diferente da anistia, que é uma lei, votada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo, apagando o crime. O indulto vem por decreto presidencial, sem participação do Legislativo, e não zera a folha corrida da pessoa. Mas é constitucional. É lícito o Executivo indultar, no todo ou em parte, o condenado que quiser. Tenho a convicção de que Dilma Rousseff não quer indultar os réus. Isso teria um custo político alto, pois ela passaria por simpática a pessoas que parte da opinião pública vê como criminosas. Mas notem que, segundo a FGV, a confiança da população no Judiciário diminuiu durante os meses do julgamento, passando de 42 a 39%. A percepção social do terceiro Poder não melhorou (também, não piorou sensivelmente). Mas o STF não está blindado contra uma campanha.

É pena que, depois de julgar um caso tão momentoso e abrir uma jurisprudência importante, o Supremo esteja terminando o episódio com questões tão menores. O grande argumento contra as decisões que tomou é que estaria esvaziando os Poderes democraticamente eleitos. Isso, obviamente, não é bom para a democracia. Com todo o respeito pelo STF, lembremos que o mais conhecido tribunal superior do mundo, a Corte Suprema dos Estados Unidos, fez um mal danado àquele país no período que culminou no governo de Franklin Roosevelt. Durante meio século, ele fulminou toda lei social ou trabalhista. (Nosso STF está longe disso e tem uma bela folha na questão dos direitos humanos). Roosevelt chegou a propor, ao Congresso, a reforma da corte. Ela não foi aprovada, mas o Supremo recuou.

Enquanto isso, é Michel Temer quem propõe uma solução de conciliação: que o Supremo reconheça o direito da Câmara a cassar os seus membros, e que esta o faça. É o óbvio. Mas, quando as paixões substituem a reflexão, o óbvio fica difícil. Problemático é quando isso ocorre no Poder que deveria ser o mais ponderado, até porque seu símbolo é a balança. Se Temer tiver êxito, as instituições se acalmam - e ele acumula créditos no céu, por tê-las salvado. Mas instituições não deveriam precisar que alguém as salve. Instituições existem, justamente, para terem uma lógica que neutralize as paixões.
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