Cora Rónai O Globo 9.9.2010
Na quarta-feira passada, logo cedo, mandei a crônica para o jornal, como sempre faço. Continuava contando o que vi na península escandinava, lugar menos misterioso e atraente do que a Índia, meu penúltimo destino de férias, mas não menos estranho, por ser, no todo e nas muitas partes, o exato oposto do Brasil.
Mais tarde, lendo o jornal cheio de notícias sobre a campanha política, me veio uma certa sensação de inadequação por estar falando de algo tão distante, em todos os sentidos. Acontece, contudo, que o cronista é, antes de tudo, um ser humano — e o ser humano que assina esta crônica anda sem coração ou mente para a “política” que se pratica no país.
– Mas você não vai falar nada de nada sobre a campanha? – perguntou a Bia, quando conversamos sobre o assunto.
– Não vou não. Nunca vi uma campanha tão feia, tão mentirosa, tão marqueteira. Além disso, o que será dos leitores se todos os cronistas e colunistas escreverem sobre o mesmo tema? Não dá para ser mais objetiva do que o Merval, nem mais sarcástica do que o João Ubaldo.
Para que uma campanha política consiga motivar os eleitores, ela precisa, em primeiro lugar, ser… política! Mas não há nada de político, no antigo e nobre sentido da palavra, no que nos vem sendo apresentado. O mundo em que os candidatos vivem não guarda nenhuma relação com a realidade que pretendem administrar. Aliás, salvo a Marina, os próprios candidatos deixaram de passar qualquer impressão de autenticidade. São fantoches de si mesmo, criaturas de propaganda que apresentam não o que são, mas o que gostariam de ser. Ou nem isso; apenas o que seus marqueteiros acham que vende melhor.
Assim, de pessoa notoriamente tida por prepotente e atrabiliária (mas diplomaticamente apresentada como “difícil”), Dilma tenta passar por senhora educada, por mãe ocasionalmente severa, mas sempre gentil e compreensiva; de oposicionista de poucos amigos, Serra pretende ser acessível, religioso, popular. Não é, não são. Isso para não falar em todo o cardume menor, salpicado de criminosos e de figuras ridículas.
O presidente, que devia pelo menos fingir que respeita as leis, usa sem qualquer pudor a máquina do governo, que há tempos deixou de ser para todos e transformou-se em criminosa ferramenta partidária; a oposição, cheia de aspas, desvirtua um tenebroso caso de polícia para tentar ganhar no tapetão, repetindo as práticas antidemocráticas do PT.
Cadê a política nisso?! Cadê os projetos, cadê as propostas para a educação, base de tudo, que está indo para o brejo à velocidade da luz?
* * *
Durante os governos que antecederam a Era Lula, o PT fez a oposição mais cerrada e hidrófoba que já se viu. Bastava uma idéia ser apresentada pelo governo para que a militância a estraçalhasse, como uma matilha de hienas destroça o cadáver de um antílope (vide Nat Geo Wild). Teria sido curioso ver como se portaria o PT no governo diante de uma oposição semelhante; mas, feito para governar, o PSDB nunca soube fazer oposição.
Por causa disso, todos os “malfeitos” do governo Lula ficaram por isso mesmo, por “malfeitos” e “futricas menores” – e o país, que já não andava muito bem no quesito da ética, desandou de vez. A falta de moral generalizada e a pasmaceira apontada por Plinio Sampaio são os grandes legados da Era Lula, mas a responsabilidade por essa herança maldita não cabe apenas ao PT. A culpa é também dos partidos de oposição, que não conseguiram encostar ninguém contra a parede e dizer que certas coisas não se fazem.
A rigor, porém, nem sei por que estou falando nisso; eu já disse que não vou escrever sobre a campanha política. Não me reconheço no que vai pela televisão. Meu país é melhor e mais rico, mais diversificado, criativo e inteligente. E, apesar de saber que eles não vieram para cá em espaçonaves, nem surgiram por geração espontânea, continuo achando que o Brasil não merece os políticos que tem.
* * *
E mais uma vez, quando o coração anda pesado com o que acontece à nossa volta, Maria Bethânia surge no horizonte, esplendorosa, e põe os pingos nos ii, mostrando que, apesar de tudo, o Brasil tem muito bem onde se segurar. Dessa vez, na última quinta-feira, ela contou com o auxílio de uma platéia formada por alunos da rede pública de ensino, que foram ouvi-la em “Bethânia e as palavras — leituras”, espetáculo de pouco mais de uma hora de poesia.
É provável que os meninos e meninas que estavam lá nunca tenham ouvido poesia falada, mas todos entraram perfeitamente no clima do recital. Ficaram atentos e encantados, responderam com longos aplausos quando seus professores foram mencionados e, sobretudo, quando Bethânia, homenageando um antigo mestre, lembrou que ali estava uma ex-aluna do recôncavo baiano – prova de que é possível “uma boa, devida e plena educação nas escolas públicas”.
“Bethânia e as palavras” não é só um comovente (e imperdível) recital de poesia; é também um manifesto pela educação, em que são recorrentes as imagens dos cadernos, dos lápis, da leitura, do encanto pelas palavras e pelos poemas. Um manifesto, enfim, pela sensibilidade e pela delicadeza.
De tudo o que eu tenho visto e lido, é, disparado, o melhor antídoto contra a campanha eleitoral.
(O Globo, Segundo Caderno, 9.9.2010)
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