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O argumento desta coluna de hoje não vai obedecer a uma linha reta, mas é fato fora de qualquer contestação que a estabilidade das instituições da democracia representativa ao longo dessas últimas três décadas tem repercutido positivamente no sentido de favorecer políticas públicas destinadas a minorar o grau de exclusão dos setores subalternos da nossa sociedade. Pesquisas recentes têm até demonstrado um crescimento significativo de um mercado consumidor com padrões típicos das classes médias, resultado da elevação das rendas de parcelas da população situadas desde sempre na base da pirâmide social.
Para tanto, têm contribuído o poderoso legado da Carta de 1988 em matéria de regulação da questão social brasileira, o atual bom desempenho da economia, assim como as políticas orientadas para o aumento do salário mínimo e os programas de cunho assistencialista com foco nos setores socialmente mais vulneráveis.
À primeira vista, confirma-se, portanto, uma das melhores expectativas da agenda de lutas da resistência democrática contra o regime autoritário dos anos 1964/85, que vinculava as exigências de democratização social ao avanço continuado da democracia política. Com efeito, sob um regime democrático, em um mercado político de massas, pelo voto, as grandes maiorias vêm encontrando os meios, principalmente nos momentos eleitorais, para que algumas de suas demandas mais sentidas sejam incorporadas pelos que buscam a sua representação.
Contudo, outra forte expectativa daquela agenda era a de que, com a afirmação de um regime de liberdades civis e públicas, a cidadania reuniria, afinal, condições para adensar a sociedade civil, alargando a esfera pública com a participação de organizações sociais autônomas do Estado - a própria Carta de 1988 declarou que, além de representativa, a democracia brasileira seria participativa, atribuindo ao cidadão um papel ativo na condução do seu destino. Não é difícil admitir, diante do atual estado de coisas, que tal expectativa tem sido frustrada.
Decididamente, esteve muito longe das cogitações dos fundadores da moderna república democrática brasileira apartar a sociedade civil do seu Estado, e, menos ainda, conferir primazia a este nas suas relações com ela, na forma que se vem impondo nos últimos anos, inclusive por meio de nexos corporativos que instalam no seu interior movimentos sociais organizados, como o sindicalismo. Tal forma não obedece a qualquer desenho institucional legitimado pelo legislador, resultante, em boa parte e na melhor das hipóteses, das contingências da política e das reações dos atores no sentido de buscar soluções para elas.
Alguns momentos ilustram esse processo: a fixação, a todos os títulos justificável, no governo Itamar Franco, da luta contra a inflação como objetivo primordial da ação do Estado; e, no governo Lula, a adoção de uma agenda de intervenção na questão social como política de Estado - para esse fim, criou-se o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza -, e de uma estratégia de modernização conduzida pela ação estatal. Em políticas dessa natureza, o decisivo depende de intervenções sistêmicas com origem nos centros de poder, que, para melhor perseguirem seus fins, se insulam da sociedade, partícipe passivo desses processos.
O sucesso do Plano Real, notoriamente, não se limitou a sanear e a racionalizar a economia, repercutindo fortemente na melhoria das condições de vida dos setores subalternos, que, por duas vezes, forneceram um expressivo contingente de votos para que FHC, um dos responsáveis por ele, fosse conduzido à Presidência no primeiro turno das eleições. Estabeleceu-se aí um encontro feliz, com uma mínima intermediação da política, entre a alta tecnocracia estatal e o homem comum. Igualmente com mínima intermediação da política, por meio de intervenções tecnocráticas, Lula, ao massificar políticas de assistência social, antes de âmbito reduzido, propiciou outro encontro feliz do governo com as massas desvalidas da população. Em estilo semelhante, a partir do seu segundo mandato, adotou um modelo de modernização típico de processos capitalistas politicamente orientados, mas, aí, já para a felicidade das grandes empreiteiras e de outros setores do grande capital.
São, portanto, quatro mandatos de governos do PSDB e do PT, em que alguns dos seus principais êxitos sociais e econômicos tiveram a característica comum - mais uma convergência entre eles - de serem resultados, diante de uma sociedade imobilizada politicamente, de intervenções do Estado e de suas agências especializadas na regulação da economia e na do social. Nada de surpreendente, então, que a política esteja em baixa, a ponto do nosso principal partido de massas, o PT, ter sido ultrapassado pelo lulismo, uma representação nua do social que apenas tolera a política como um mal necessário. No caso, vale comparar com o que sucede com as reformas sociais empreendidas pelo governo Barack Obama, especialmente a da política de saúde, que têm implicado, no seu encaminhamento, uma máxima intermediação da política na sociedade americana.
Nessa sucessão, que transcorre em meio a uma melancólica apresentação de dados sobre indicadores sociais, a política é a grande ausente, em que os principais candidatos sequer revelam seus programas de governo e passam ao largo, em uma sociedade com suas tradições fincadas no autoritarismo político, das discussões sobre como aperfeiçoar a democracia entre nós. A política, em registro minimalista, resta submersa no social - a questão agrária, é claro, fora, porque ela politiza tudo -, como uma pedra no caminho. Ela é o caminho, e não há bons pretextos para ignorá-la, nem para que se procurem atalhos fora dela em nome de presumidas razões de justiça e de imperativos de grandeza nacional. A propósito, para onde mesmo estamos indo?
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