domingo, 5 de junho de 2011

Catumbi


FERNANDA TORRES
REVISTA VEJA - RIO

Uma vez, à noite, caminhando em direção a um restaurante em uma avenida de Los Angeles, cruzei com um grupo ruidoso de rapazes. Na penumbra, os dreadlocks dos cabelos e as bermudas largas deram ao conjunto um ar de gangue. Talvez as imagens da rebelião nas ruas de LA em 1992 tenham me vindo à cabeça, não sei, o fato é que, quando os vi chegando perto, agarrei discretamente o braço do meu consorte em busca de proteção.
Um dos jovens percebeu e me perguntou em voz alta: “Você está com medo de mim?!”. Em seguida se dirigiu jocosamente para os amigos e repetiu: “Ela está com medo de mim!” — e foi embora entre o espanto, a ofensa e a galhofa.
Passada a vergonha, uma revista involuntária das razões que me levaram a ter medo de um bando de moleques inofensivos me fez lembrar que, fora a falta de coragem congênita, eu nasci em uma cidade violenta.
Não se anda distraído no Rio de Janeiro. Já vi gatuno de faca furtando em ônibus, já sofri assalto à mão armada. Já tive o lar invadido por larápios noturnos e parei de correr nas Paineiras por quase dez anos, depois de dar duas vezes de cara com cadáveres desovados na estrada.
É por essas e outras que nem na Suécia eu caminho despreocupada.
A violência urbana, impregnada em nós, é o lado mais sombrio do Rio de Janeiro. O país inteiro sofre desse mal, mas aqui ele formou impérios. Bairros inteiros, zonas preciosas da memória da cidade, sucumbiram em meio à pobreza e às armas.
O motorista escolheu subir para Santa Teresa pelo Catumbi. O percurso incluía um bordejo pela Rua Itapiru. Há muito tempo eu não visito minhas primas no casarão da Rua Itapiru. Quando passamos em frente ao endereço, abri a janela para vê-lo melhor.
Parte da minha infância foi ali, no sobradão de dois andares com frontispício esculpido em pedras gigantescas. Ele foi herdado por meu tio Viriato, em um inventário que dizimou o que restava dos bens da família portuguesa proprietária de incontáveis imóveis na redondeza.
Minha tia Áurea gostava de fazer a lista dos morros vizinhos à propriedade: Querosene, Coroa, Formiga... Não sei nem se são esses mesmo, mas guardei assim. Os anos agravaram a tragédia geral e os estampidos de tiros se tornaram frequentes.
Minhas primas herdaram a casa depois da morte de minha tia. Foram elas que assistiram ao exército de homens de moto e escopeta descendo para o asfalto, foram elas que testemunharam o sumiço da polícia, em um pacto sinistro de temor e respeito ao território inimigo. Foram as duas que se viram obrigadas a criar os filhos em uma zona de guerra.
E não estou falando de uma viela tomada pelo poder paralelo, mas de uma rua larga, de duas mãos, com alta circulação de ônibus e caminhões que desemboca no Centro.
O carro seguiu, estávamos com hora marcada para uma entrevista no hotel em Santa Teresa.
Inúmeros prédios de uma arquitetura lusa preciosa se insinuavam pelo vidro. “E se as UPPs pacificarem minimamente esta cidade? E se o investimento que entrar for aplicado corretamente?”, ponderei incrédula. Talvez um dos poucos bairros que resistiram à corrida imobiliária do fim do milênio tenha a chance de recuperar a elegância.
Passado o cemitério, viramos à direita em uma ladeira íngreme. Como é linda Santa Teresa. Pura Graça, bairro lisboeta onde ainda circulam os elétricos. Residências antigas, banhadas pelo sol do outono, faziam parecer insano escolher outro lugar para viver.
Mas Santa Teresa preservou sua nobreza, mesmo com todos os dissabores. O Catumbi, não. Dele sai ou desemboca grande parte das favelas do alto do morro. Desde “os salões da Rua Itapiru, na casa das Novaes”, quando a rainha do rádio Marlene cantava “o calor estava abrasador”, versos de Tome Polca, que o Rio se esqueceu do Catumbi.
De localização estratégica, entre o Centro, a Tijuca e a Zona Sul, a região merece atenção. Com a relativa trégua das metralhadoras, seria emblemática a devolução do Catumbi aos cariocas.
Quem sabe, nesse dia, eu me cure da sina de tremer diante de meia dúzia de guris imberbes.
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