sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Existe saída para a Europa?



JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
O Estado de S.Paulo

A situação europeia complica-se a cada dia e desafia os analistas. Acredito que uma breve lembrança do que se passou com o Brasil e nos principais países da América Latina na década de 80 auxilia no entendimento do tamanho do problema e das dificuldades envolvidas na busca de uma solução. Vale mencionar os seguintes pontos principais:

- Acumulamos uma grande dívida externa após o primeiro choque do petróleo de 1973. Isso decorreu da resposta brasileira à crise, de elevar o crescimento doméstico através de pesados investimentos, especialmente em infraestrutura e produtos industriais intermediários.

- Entretanto, quebramos com o segundo choque do petróleo, quando os créditos externos secaram; a crise, por sua vez, só foi oficialmente reconhecida em 1982, após as eleições.

- Chega o FMI com sua estrutura de ajuste: desvalorização, ajuste fiscal e reformas estruturais. Entretanto, os pacotes são impossíveis de serem cumpridos, como ocorreu agora com o pacote grego de 2010. Seguiu-se um período onde, na saborosa frase de Mario H. Simonsen, fingíamos que pagávamos e os bancos fingiam que recebiam. A ideia era ganhar tempo para melhorar os balanços de devedores e credores.

- Não se podia deixar os três grandes devedores (Brasil, Argentina e México) fazerem fila, para não colocar um peso acima do suportável e tudo afundar, algo que se repete agora com a Grécia, Portugal e Irlanda.

- Neste meio tempo, os bancos credores com pequenas exposições começavam a vender seus riscos com desconto, pois podiam levar os prejuízos a balanço. Aparece o mercado de títulos abaixo do par. Entretanto, a dívida se concentrava cada vez mais nos grandes credores.

- A saída só aparece com o Plano Brady, que permitiu uma reestruturação geral. Esta só pôde ocorrer depois de algum ajuste nos bancos credores, além de um certo ajuste interno e externo nos devedores, que desvalorizaram e desenvolveram novas áreas de "tradables" (agrícolas e metais no Brasil, agrícolas na Argentina e Nafta no México).

- A renegociação brasileira só termina em 1993. Entretanto, ficaram: uma década de baixo crescimento e um enorme problema inflacionário, que só foi resolvido depois do sucesso do Plano Real.

Esta análise nos permite entender melhor quão difícil é o problema da Europa, inclusive, ou especialmente, porque não existe o instrumento da desvalorização cambial. Certamente, o maior risco individual para a economia mundial é colocado pela economia europeia. Embora seja bem conhecido, vale a pena ilustrar seus componentes:

1. Existem países insolventes ou quase lá (Grécia, Portugal e Irlanda) que precisam ser suportados, antes que contaminem países maiores (Itália, Espanha e outros), elevando o custo da rolagem da dívida e empurrando-os para o pior. Se este caminho não for rápida e decisivamente combatido, vai se transformar numa profecia que se auto confirma e poderá resultar numa crise bancária que acabaria por derrubar a Europa como um todo, certamente jogando o mundo numa recessão. O que foi feito até agora neste item não é pouco, mas cobre apenas parte do problema. Os avanços incluem: a montagem de uma estrutura de elaboração e verificação da execução do ajuste, com o auxílio do FMI; a criação e institucionalização do Fundo Europeu de Estabilidade; a criação de um mecanismo de refinanciamento da dívida com desconto (via leilões), de sorte a reduzir parte da dívida, embora não muito grande; e, finalmente, a ruptura de uma tradição no BCE, que passou a comprar papéis da Espanha e da Itália, para quebrar o pânico dos mercados, o que aliviou temporariamente apenas o temor dos mercados, como hoje sabemos.

Entretanto, os mercados temem que se chegue mais adiante à conclusão que o pacote da Grécia ainda seja insuficiente e que necessite de mais recursos, mesmo que o país avance no ajuste fiscal. Ademais, certamente serão necessários mais recursos para acomodar programas para Portugal e Irlanda. Que dirá da Itália!

2. Mesmo com o avanço dos programas tipo Grécia, não existe garantia que, no futuro, os países, após o pior, não voltem a gastar mais do que podem. Em tese, a única resposta para isso seria avançar para um verdadeiro federalismo fiscal, onde a emissão de bônus europeus seria compensada pela perda da autonomia para gastos nos diversos entes nacionais, à semelhança do que o governo brasileiro fez com os Estados durante o Plano Real. A dificuldade com essa solução é política, e gigantesca. Os países europeus certamente não estão preparados para uma decisão tão radical neste momento, inclusive porque é evidente a fragilidade da liderança política europeia.

3. O federalismo fiscal tem como hipótese básica que se deseja, acima de tudo, manter o euro como está, o que me parece claro ainda ser a opção básica dos países europeus, inclusive a Alemanha. Um observador arguto já disse que a Alemanha iniciou duas guerras buscando dominar a Europa e as perdeu. Com o euro, tal objetivo foi alcançado e certamente o país não abrirá facilmente a mão de um mercado superior a US$ 15 trilhões que está totalmente dominado. Certamente, convencer o eleitor médio alemão dessa realidade não é simples, mas o governo e a elite econômica persistirão por bastante tempo na defesa do euro. Por quanto tempo esta hipótese se manterá, ninguém sabe. Por outro lado, a Grécia não pode sair facilmente da união monetária, a começar pelo fato que não tem nem meio circulante, nem sistema de pagamentos. Ainda que por hipótese se imaginasse um desligamento do euro, a desvalorização da nova dracma que se seguiria provavelmente resultaria numa hiperinflação. Isso sem falar que sua saída levantaria rumores de quem seria o próximo.

4. Finalmente, mesmo que tudo o colocado acima seja bem-sucedido, remanesce a pergunta se os países do sul da Europa conseguirão gerar novas atividades "tradables" que permitam retomar o crescimento, mantendo o serviço da dívida. Lembremo-nos que o sul da Europa já enfrenta uma violenta queda no padrão de vida da população, fruto dos ajustes ainda parciais em curso. Da mesma forma, conseguirá a Itália sair de uma estagnação de 15 anos?

Essa é uma tarefa hercúlea. Vai levar muito tempo para que se construa alguma solução, mesmo no melhor resultado, isto é, aquela em que a Europa se mantém unida. Neste meio tempo, teremos muita incerteza e volatilidade, risco de um evento de crédito e, possivelmente, uma recessão. Conflitos políticos e sociais, como os que recentemente ocorreram em Londres, certamente serão de alguma frequência.

Obs.: Para quem tiver interesse nas relações entre ajuste fiscal e conflitos, sugiro o excelente trabalho de Ponticelli, J e Voth, H: Austerity and Anarchy: Budget Cuts and Social Unrest in Europr, 1919-2009, UPF, Barcelona, 11/8/2011.
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