Gaudêncio Torquato
O Estado de S.Paulo
O chiste é conhecido. Ao criar o mundo, Deus distribuiu as catástrofes pela Terra, enquanto comentava com o anjo ao seu lado: "Aqui eu vou localizar os EUA, com seus terremotos e furacões; ali vai ser a Europa, que vai ter também vulcões e terremotos; acolá vou instalar a Ásia, com desertos, terremotos e tsunamis". Curioso, o anjo indagou: "E nesse local vai pôr o quê?" Deus respondeu: "Aqui será o Brasil". Insistiu o arcanjo: "E ele não vai ganhar catástrofes naturais?" A resposta divina: "Não, de jeito nenhum, mas você vai ver os políticos que eu vou botar lá". Ou a versão sobre a criação do mundo não é correta ou a galhofa sobre o Brasil não resiste aos solavancos da natureza neste início de século 21. Pois os nossos trópicos começam a frequentar o ranking das grandes catástrofes do planeta.
Em janeiro, o País registrou o maior desastre climático de sua existência, na Região Serrana do Rio de Janeiro, que contabilizou 820 mortos. Foi o oitavo pior deslizamento de terras da História mundial. O ano chega ao fim com o grave acidente no poço da Chevron no Campo de Frade (Bacia de Campos, RJ), que derramou no mar 440 mil litros de petróleo. De desastre em desastre e milhares de vítimas, vivenciando incidentes que deixam marcas profundas na anatomia de cidades e regiões, o Brasil já não é o território seguro tão admirado em comparação com outras nações. Seu mapa faz parte da geografia de vorazes predadores da natureza. Quando se efetivar a extração de óleo do pré-sal, ganharemos o título de terceiro maior poluidor do mundo, ficando apenas atrás dos EUA e da China.
Subimos celeremente no ranking da poluição. A planilha de calamidades se adensa. Em 2010 a Petrobrás, empresa orgulho da Nação, bateu o recorde de autos de infração, registrando 57 vazamentos. O volume de petróleo e derivados derramado cresceu 163%, pulando de 1.597 mil barris em 2009 para 4.201 mil espalhados na natureza no ano passado. Pairam ameaças por todos os lados. Na semana passada, um supercargueiro da Vale, ao ser carregado com 385 mil toneladas de minério de ferro no porto de São Luís (MA), exibia rachaduras no tanque de lastro. Despejada no mar, essa carga causaria tragédia sem precedentes em nossa costa.
Na paisagem devastada por acidentes/incidentes, muitos dos quais resultam de incúria, a nota de destaque: o Brasil não dispõe de um plano de contingência para administrar catástrofes. A cada evento, seja um temporal arrasador, o vazamento de óleo de um poço ou uma epidemia de dengue, como a que se prenuncia em cerca de 300 cidades, as providências revelam traços de improvisação. Mas não faltam discursos conflitantes, passeios de autoridades por destroços, uma ou outra verba liberada para dourar a imagem dos governos de plantão e multas que não se sabe quando e como serão pagas pelos responsáveis.
O País é useiro e vezeiro na arte de improvisar soluções para suas tragédias. Todos os anos as mesmas regiões sofrem com enchentes e enxurradas, principalmente Santa Catarina, Rio Grande do Sul e cidades serranas do Rio. As mortes e o número de acidentados se expandem. As rotinas se banalizam. Após os impactos físicos e emocionais, a vida volta ao normal e as populações passam a conviver com obras de recuperação, as quais, com raras exceções, não vão ao cerne dos problemas. As calamidades tornarão a acontecer.
Se não dispomos de programas (robustos) para administrar os previsíveis eventos de nossas estações climáticas, imagine-se o caos que um acidente nuclear poderia gerar. É lorota argumentar que nossas usinas são seguras e confiáveis. Não era seguro o reator 4 da central nuclear de Chernobyl, que, ultrapassando o nível de aquecimento, explodiu e liberou uma nuvem radioativa sobre a ex-União Soviética e a Europa Oriental, em 1986, matando milhares de pessoas? Dois anos antes, em Bhopal, na Índia, um vazamento de 42 toneladas de isocianato de metila de uma fábrica, em contato com a atmosfera, ceifou a vida de 20 mil pessoas e de milhares de animais. O Brasil saberia administrar um acidente nuclear na região de Angra dos Reis? Se alguém responder positivamente, estará cometendo um desatino. Não sabemos lidar com tragédias.
Em face do potencial brasileiro na exploração do petróleo (9 mil poços em operação em mar e terra e perspectiva de produzir 6 milhões de barris diários até 2020) e tendo em vista a perspectiva do pré-sal, é razoável prever que os riscos iminentes se localizam nesses campos. Esse episódio provocado pela americana Chevron remete ao maior desastre ambiental da História dos EUA, em abril do ano passado, quando 172 milhões de galões de óleo foram despejados no Golfo do México, ocasionando prejuízos materiais e ambientais inestimáveis.
Dessa teia de eventos terríveis sobra para as nossas autoridades o conselho de redobrar a atenção. Urge não apenas planejar sistemas de prevenção, mas fazer mapeamento minucioso das frentes consideradas de risco (alto, médio e pequeno) em todos os espaços do território nacional. Há uma pletora de estruturas com responsabilidades sobre os espaços de risco - agências reguladoras, órgãos de controle ambiental nas instâncias federal, estaduais e municipais, ministérios e frentes de defesa civil, etc. Ressente-se de clareza normativa e operacional para tais órgãos. Quem coordena o que e quem? Como é sabido, são comuns entre nós duplicações de estruturas e consequentes acusações recíprocas de culpa. Os governantes, por sua vez, desenvolvem certa ojeriza a ações que não dão voto, como planos de prevenção, obras escondidas (saneamento básico), códigos de controle ambiental ou conceitos abstratos como desenvolvimento sustentável.
De tropeço em tropeço, a imagem do éden, que nos é impingida desde que Cabral, deslumbrado, arregalou os olhos para a exuberância de nossa natureza, se esgarça na fumaça destes tempos cada vez mais catastróficos.
O chiste é conhecido. Ao criar o mundo, Deus distribuiu as catástrofes pela Terra, enquanto comentava com o anjo ao seu lado: "Aqui eu vou localizar os EUA, com seus terremotos e furacões; ali vai ser a Europa, que vai ter também vulcões e terremotos; acolá vou instalar a Ásia, com desertos, terremotos e tsunamis". Curioso, o anjo indagou: "E nesse local vai pôr o quê?" Deus respondeu: "Aqui será o Brasil". Insistiu o arcanjo: "E ele não vai ganhar catástrofes naturais?" A resposta divina: "Não, de jeito nenhum, mas você vai ver os políticos que eu vou botar lá". Ou a versão sobre a criação do mundo não é correta ou a galhofa sobre o Brasil não resiste aos solavancos da natureza neste início de século 21. Pois os nossos trópicos começam a frequentar o ranking das grandes catástrofes do planeta.
Em janeiro, o País registrou o maior desastre climático de sua existência, na Região Serrana do Rio de Janeiro, que contabilizou 820 mortos. Foi o oitavo pior deslizamento de terras da História mundial. O ano chega ao fim com o grave acidente no poço da Chevron no Campo de Frade (Bacia de Campos, RJ), que derramou no mar 440 mil litros de petróleo. De desastre em desastre e milhares de vítimas, vivenciando incidentes que deixam marcas profundas na anatomia de cidades e regiões, o Brasil já não é o território seguro tão admirado em comparação com outras nações. Seu mapa faz parte da geografia de vorazes predadores da natureza. Quando se efetivar a extração de óleo do pré-sal, ganharemos o título de terceiro maior poluidor do mundo, ficando apenas atrás dos EUA e da China.
Subimos celeremente no ranking da poluição. A planilha de calamidades se adensa. Em 2010 a Petrobrás, empresa orgulho da Nação, bateu o recorde de autos de infração, registrando 57 vazamentos. O volume de petróleo e derivados derramado cresceu 163%, pulando de 1.597 mil barris em 2009 para 4.201 mil espalhados na natureza no ano passado. Pairam ameaças por todos os lados. Na semana passada, um supercargueiro da Vale, ao ser carregado com 385 mil toneladas de minério de ferro no porto de São Luís (MA), exibia rachaduras no tanque de lastro. Despejada no mar, essa carga causaria tragédia sem precedentes em nossa costa.
Na paisagem devastada por acidentes/incidentes, muitos dos quais resultam de incúria, a nota de destaque: o Brasil não dispõe de um plano de contingência para administrar catástrofes. A cada evento, seja um temporal arrasador, o vazamento de óleo de um poço ou uma epidemia de dengue, como a que se prenuncia em cerca de 300 cidades, as providências revelam traços de improvisação. Mas não faltam discursos conflitantes, passeios de autoridades por destroços, uma ou outra verba liberada para dourar a imagem dos governos de plantão e multas que não se sabe quando e como serão pagas pelos responsáveis.
O País é useiro e vezeiro na arte de improvisar soluções para suas tragédias. Todos os anos as mesmas regiões sofrem com enchentes e enxurradas, principalmente Santa Catarina, Rio Grande do Sul e cidades serranas do Rio. As mortes e o número de acidentados se expandem. As rotinas se banalizam. Após os impactos físicos e emocionais, a vida volta ao normal e as populações passam a conviver com obras de recuperação, as quais, com raras exceções, não vão ao cerne dos problemas. As calamidades tornarão a acontecer.
Se não dispomos de programas (robustos) para administrar os previsíveis eventos de nossas estações climáticas, imagine-se o caos que um acidente nuclear poderia gerar. É lorota argumentar que nossas usinas são seguras e confiáveis. Não era seguro o reator 4 da central nuclear de Chernobyl, que, ultrapassando o nível de aquecimento, explodiu e liberou uma nuvem radioativa sobre a ex-União Soviética e a Europa Oriental, em 1986, matando milhares de pessoas? Dois anos antes, em Bhopal, na Índia, um vazamento de 42 toneladas de isocianato de metila de uma fábrica, em contato com a atmosfera, ceifou a vida de 20 mil pessoas e de milhares de animais. O Brasil saberia administrar um acidente nuclear na região de Angra dos Reis? Se alguém responder positivamente, estará cometendo um desatino. Não sabemos lidar com tragédias.
Em face do potencial brasileiro na exploração do petróleo (9 mil poços em operação em mar e terra e perspectiva de produzir 6 milhões de barris diários até 2020) e tendo em vista a perspectiva do pré-sal, é razoável prever que os riscos iminentes se localizam nesses campos. Esse episódio provocado pela americana Chevron remete ao maior desastre ambiental da História dos EUA, em abril do ano passado, quando 172 milhões de galões de óleo foram despejados no Golfo do México, ocasionando prejuízos materiais e ambientais inestimáveis.
Dessa teia de eventos terríveis sobra para as nossas autoridades o conselho de redobrar a atenção. Urge não apenas planejar sistemas de prevenção, mas fazer mapeamento minucioso das frentes consideradas de risco (alto, médio e pequeno) em todos os espaços do território nacional. Há uma pletora de estruturas com responsabilidades sobre os espaços de risco - agências reguladoras, órgãos de controle ambiental nas instâncias federal, estaduais e municipais, ministérios e frentes de defesa civil, etc. Ressente-se de clareza normativa e operacional para tais órgãos. Quem coordena o que e quem? Como é sabido, são comuns entre nós duplicações de estruturas e consequentes acusações recíprocas de culpa. Os governantes, por sua vez, desenvolvem certa ojeriza a ações que não dão voto, como planos de prevenção, obras escondidas (saneamento básico), códigos de controle ambiental ou conceitos abstratos como desenvolvimento sustentável.
De tropeço em tropeço, a imagem do éden, que nos é impingida desde que Cabral, deslumbrado, arregalou os olhos para a exuberância de nossa natureza, se esgarça na fumaça destes tempos cada vez mais catastróficos.
JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO
TWITTER: @GAUDTORQUATO
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