quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A pessoa do ano

A pessoa do ano

CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SP

"Nem sempre se trata de uma figura admirável. O critério da escolha é a influência. Prova disso: em 1938, a pessoa do ano foi Adolf Hitler, e Stálin ganhou em 1939"


Tradicionalmente, no fim de dezembro, a revista Time elege a "pessoa do ano" e lhe dedica sua capa.

Nem sempre se trata de uma figura admirável. O critério da escolha é a influência, o peso -para o bem ou para o mal. Prova disso: em 1938, a pessoa do ano foi Adolf Hitler, e Stálin ganhou o título em 1939 por causa dos possíveis efeitos catastróficos do pacto germano-soviético de não agressão (certamente pouco apreciado pela Time e por seus leitores). Stálin foi pessoa do ano novamente (desta vez, por razões lisonjeiras) em 1942, pela vitória de Stalingrado, que mudou o curso da Segunda Guerra (1939-45).

Como já sabíamos antes que a Time desta semana fosse publicada, a pessoa do ano de 2011 é "The Protester" - o protestador, no sentido de manifestante que contesta e protesta.

A Time reconhece que há diferenças consideráveis entre as três categorias principais de protestadores do ano, ou seja, entre: 1) os insurrectos da Primavera Árabe, que pediram (e muitos deles ainda pedem) uma mudança de regime; 2) os indignados europeus, desempregados e/ou ameaçados pela crise de seus Estados assistenciais; e 3) os revoltados norte-americanos do movimento "Ocupe Wall Street", descontentes com a desigualdade e com o poder do capital financeiro (um pouco no espírito da revolta de Seattle em 1999).

Mas a revista julga que os traços comuns a esses grupos são mais importantes que suas diferenças: nos três casos, a massa dos protestadores é composta de jovens, instruídos, de classe média, que não se identificam com partidos políticos oficiais e acreditam "que o sistema político e a economia de seu país tenham se tornado disfuncionais e corruptos - democracias de fachada, manipuladas para favorecer a ricos e poderosos".

Há outra diferença aparente entre os grupos: como nota Kurt Andersen, os manifestantes europeus e de Wall Street se queixam da falta de democracia nos seus regimes, enquanto muitos combatentes da Primavera Árabe apontariam esses regimes como modelos desejáveis de funcionamento democrático.

Contradição? Nem tanto. A democracia é um sistema que sobrevive à condição de que nunca paremos de lutar, ou seja, ela é sempre perfectível e se perde se a consideramos perfeita e deixamos de lutar por ela - para estabelecê-la (como os árabes) ou para aprimorá-la (como europeus e americanos), tanto faz.

Além disso, a Time não escolheu um grupo: a pessoa do ano é um indivíduo, "o" protestador. Algo análogo tinha acontecido em 1956, quando os tanques da União Soviética esmagaram a resistência popular húngara. A revista elegera pessoa do ano o "Hungarian Freedom Fighter", o lutador húngaro pela liberdade. Nesse caso também, não fora honrado um grupo, mas "o" lutador, um indivíduo - anônimo, mas um indivíduo mesmo assim, como o "protester" de 2011.

Isso não acontece apenas porque "a pessoa do ano" teria que ser necessariamente singular (uma pessoa, justamente). Há outra razão: a revista escolheu "o" indivíduo que manifesta porque (como escreveu Rick Stengel na apresentação), independentemente da razão pela qual ele protesta, pelo simples fato de protestar, essa figura "literalmente encarna a ideia de que a ação individual pode acarretar mudanças coletivas e colossais".


Em suma, alguns dirão que a escolha do protestador como pessoa do ano de 2011 não foi certa, porque, por exemplo, o foco dos protestos é vago e seus efeitos futuros ainda incertos - eles perguntarão: "Não será cedo para dizer se esses protestos transformaram alguma coisa para melhor?".

Mas a Time enxergou outra coisa: a atitude do indivíduo que protesta é a matriz de qualquer democracia. A coragem do manifestante, mesmo que, às vezes, a gente o julgue inoportuno, mesmo que discordemos de suas razões, de seus pedidos e dos meios pelos quais ele se expressa, não deixa de ser a grande garantia da democracia.

Sempre me esforço para me lembrar disso quando sou aprisionado no meu carro por uma manifestação que paralisa o trânsito da cidade: o protestador acredita na possibilidade de seu ato mudar o mundo, e é graças a essa fé que a democracia se afirma e insiste - para todos nós.

Enfim, ao ler as retrospectivas, 2011 parece ter sido um ano de alegrias, dores e incertezas, um ano intenso. Espero que o próximo seja, para todos nós, tão interessante quanto este, se não mais.
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