MIGUEL REALE JÚNIOR
O Estado de S.Paulo
Foi chocante os invasores da Reitoria terem tido a desfaçatez de se autointitularem presos políticos. Um desrespeito à História, ao sofrimento daqueles que, de forma certa ou errada, comprometeram sua existência por um ideal de liberdade e igualdade ante os regimes ditatoriais.
Presos políticos foram os perseguidos pelo Estado Novo getuliano, submetidos ao Tribunal de Segurança Nacional, tribunal de exceção que encarcerou por 15 meses o deputado baiano libertário João Mangabeira por não compactuar com a ditadura. Já no regime militar, outro deputado baiano, Chico Pinto, foi preso por ter, na véspera da posse do presidente Geisel, denunciado em entrevista a rádio a ditadura chilena de Pinochet. Presos políticos foram os advogados detidos por exercerem a defesa de presos políticos ou por militarem na Comissão de Justiça e Paz, como José Carlos Dias e Dalmo Dallari, Maria Luiza Bierrenbach, Antonio Funari Filho. Presos políticos foram os encarcerados com base na Lei de Segurança Nacional, vistos pelo regime militar como inimigos a serem torturados entre quatro paredes nas instalações da Operação Bandeirante ou do DOI-Codi.
Presidi, de 1995 a 2001, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, encarregada de examinar a responsabilidade do Estado pela morte de presos políticos durante o período militar. A comissão era integrada por Nilmário Miranda, deputado, Luís Francisco Carvalho Filho, advogado, Suzana Lisboa, combativa representante dos familiares, general Osvaldo Pereira Gomes, procurador de Justiça Paulo Gonet e João Grandino Rodas, o atual reitor da USP, representante do Ministério das Relações Exteriores.
Pude, então, conhecer de perto o terror estatal dos que, protegidos pelo governo, se sentiam covardemente seguros para seviciar visando à obtenção de confissões e dados, levando à morte jovens que se negaram a delatar companheiros. Muitos heroicamente resistiram à tortura: Dilma Rousseff, Frei Betto, Nilmário Miranda e a irmã Maurina, torturada durante cinco meses por ter emprestado sala do orfanato que dirigia a jovens integrantes da ALN.
Muitos que faleceram ainda foram vítimas de farsas dissimuladoras do assassinato nos porões, em peças de teatrinho com versões de resistência armada na rua ou de suicídio. A Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, como se pode ver no livro Direito à Memória e à Verdade, desfez muitas das falsidades que visavam a encobrir as torturas nos calabouços.
Caso paradigmático foi o do estudante Alexandre Vannucchi Leme, aluno de Geologia da USP, preso dentro da Cidade Universitária. O jovem foi levado ao DOI-Codi, onde sofreu torturas por dois dias, 16 e 17 de março de 1973. Interrogado e seviciado por agentes de duas equipes, A e C, não resistiu aos sofrimentos e faleceu. Como versão oficial da morte, os torturadores inventaram a historinha de que Alexandre estava na Avenida Celso Garcia tomando cerveja para de repente correr, sendo perseguido por uma "turba" aos gritos de "pega ladrão", vindo a se jogar contra o para-choque de um caminhão.
Dez pessoas recolhidas no DOI-Codi, nos mesmos dias em que esteve detido Alexandre, foram taxativas em afirmar que após sessão de tortura, jogado em sua cela, foi encontrado morto, ao que gritou o carcereiro: "O homem morreu". O corpo foi retirado puxado pelos pés, deixando no chão marca de sangue. Foi enterrado como indigente no cemitério de Perus.
Em 1983 os restos mortais de Alexandre foram trasladados para Sorocaba, sua terra natal. Os estudantes da USP denominaram, então, na redemocratização do País, o Diretório Central dos Estudantes com o nome de Alexandre Vannucchi Leme. A Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que presidia e era integrada pelo atual reitor da USP, reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Alexandre Vannucchi Leme.
Após decisão da maioria de se retirarem das dependências da Faculdade de Filosofia, 70 jovens resolveram, por conta própria, invadir as dependências da Reitoria, em protesto por ter a Polícia Militar cumprido seu dever ao prender estudantes portando maconha para uso próprio. A Polícia Militar, por força de convênio requerido pelos próprios estudantes, passou a policiar a Cidade Universitária, palco de crimes graves, como latrocínio e estupro, cujas ocorrências decaíram vertiginosamente diante da presença policial. O que poderiam fazer os policiais ao verificarem a posse de entorpecente? Prevaricar? Dar o dito por não dito?
Feita a invasão, foram entabuladas, sem sucesso, negociações para saída dos 70 estudantes. Foi necessário requerer ao Judiciário a reintegração de posse, logo concedida. Datas foram sendo adiadas para o cumprimento da ordem judicial e a desocupação do prédio público, ao qual a televisão mostrou chegarem latas e latas de cerveja. Descumprida a ordem judicial, foi preciso que esta fosse efetivada, por determinação da Justiça, pela via do recurso à polícia, que, desarmada, retirou sem violência os invasores. Encaminhados à delegacia de polícia, foram autuados em face do crime de desobediência, sendo soltos a seguir.
Os estudantes podem reivindicar novas formas de policiamento, apesar de a presença da Polícia Militar na Cidade Universitária ser aprovada pela maioria dos alunos com vista à sua segurança pessoal. Inaceitável, contudo, é desrespeitar a ordem judicial, em mau exemplo para a sociedade. E mais grave ainda, depois se arrogarem o status de presos políticos. Afronta a memória daquele cujo nome designa o Diretório Central dos Estudantes e a de tantos que sofreram nos cárceres por seus ideais a petulância dos invasores de se autointitularem "presos políticos da USP".
Revela-se o pior dos vícios de hoje: a vitimização, que busca celebrizar o erro, pois, como dizia Ruy Barbosa, deve o jovem "corar menos de ter errado que de se não emendar".
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