domingo, 20 de janeiro de 2013

Hidrovias, ferrovias, sem um novo olhar


WASHINGTON NOVAES
O Estado de S.Paulo 

Parece difícil de acreditar, mas um diretor da Associação Brasileira de Recursos Hídricos anuncia que estão sendo preparadas licitações de obras para tornar viáveis hidrovias nas Bacias Teles Pires-Tapajós e Araguaia-Tocantins (Estado, 15/12/2012). O primeiro projeto já está debaixo de fortes ataques por englobar também a implantação de várias hidrelétricas em áreas indígenas e de preservação permanente na Amazônia. O segundo some e ressurge de tempos em tempos, apesar dos fortíssimos argumentos que têm sido invocados para mostrar seus inumeráveis e insuperáveis problemas.

São muitos os cientistas que têm mostrado ao longo dos anos a inconveniência de implantar uma hidrovia no Araguaia. Rio de região ainda em formação, o Araguaia nem sequer tem leito navegável permanente - pois este se desloca de ano para ano, com a movimentação de sedimentos. Estudo da Universidade Federal de Goiás já demonstrou que num único ano passam por Aruanã, ainda no Médio Araguaia, nada menos de 6 milhões de toneladas de sedimentos, vindas desde a região de nascentes, onde continuam a se formar e se expandir gigantescas voçorocas (agravadas pela erosão decorrente da formação de pastagens, canaviais e culturas de soja). Implantar uma hidrovia nesse rio exigiria escavar e isolar um canal permanente ao longo de centenas de quilômetros.

Quanto custaria? Onde se depositariam os sedimentos retirados e os que viessem depois? Qual o preço da manutenção? E o preço do transporte, já que as cargas exportadas do Centro-Oeste teriam de ser desembarcadas em certo ponto da margem, levadas por caminhão até o lugar em que seriam repassadas para a ferrovia de Carajás e de novo desembarcadas e reembarcadas no Maranhão?

Com tudo isso, também se anularia, pelos custos, a grande vantagem: permitir que safras brasileiras chegassem ao Atlântico - e daí à Europa e à Ásia - a preços inferiores aos dos produtos norte-americanos.

Isso ainda é possível com uma Ferrovia Norte-Sul. Mas quando se passa a esse capítulo das ferrovias, as surpresas não são menores. Depois de décadas de esquecimento, anuncia-se que elas terão agora investimentos federais de R$ 25 bilhões entre 2013 e 2016, aos quais se somarão R$ 50 bilhões de empreendimentos privados. Talvez consigamos assim nos redimir de tantos pecados desde que a Norte-Sul teve sua primeira licitação embargada (com toda a razão) em 1987, por causa de irregularidades na licitação do governo federal. Só que se confundiu o acessório - as irregularidades - com o principal - a obra em si. Mas, na melhor das hipóteses, essa ferrovia só estará pronta no final de 2014, segundo anunciou a presidente da República. Desde 2007 já consumiu R$ 6 bilhões e só tem 15% do trajeto pronto.

Não é só a Norte-Sul que sofre com percalços, desonestidades, etc. A Transnordestina, iniciada em 2006 e prevista para 2014, ao custo de R$ 4,5 bilhões, não será completada no prazo de 2014 (Estado, 31/12/2012). O consórcio que nela trabalha agora prevê custo de R$ 8,2 bilhões e quer um adicional, que o governo federal não aceita. E com isso se retardam as ligações do Porto de Suape, no Maranhão, e do município de Eliseu Martins, no Piauí, a Salgueiro e ao Porto de Pecém, no Ceará - o caminho para escoamento de safras em direção ao Hemisfério Norte, com as mesmas vantagens da Norte-Sul. Mas os técnicos dizem que, no ritmo atual das obras, elas só se concluirão em 2036, já que apenas 345 dos 1.728 quilômetros previstos estão prontos.

É quase impossível para as pessoas mais novas imaginar que no Brasil, há mais de meio século, cargas e pessoas se deslocavam quase somente em comboios ferroviários, de norte a sul. Como pensar que tínhamos até ramais ferroviários eletrificados? Em 1958 o País ainda tinha 38 mil quilômetros de ferrovias, que começaram a ser sucateadas nos governos a partir da década de 60, principalmente para favorecer a nascente indústria automobilística. Hoje tem 28.600 quilômetros, a maior parte ociosos durante quase todo o tempo, pois apenas 4 mil são modernos. É o que restou de um sistema iniciado no Império, em 1852, com uma concessão feita ao barão de Mauá, por 70 anos.

O sucateamento pós-privatizações, em governos da segunda metade do século passado e início deste, e a concorrência desleal do transporte rodoviário subsidiado levaram ao quadro de hoje, quando se anuncia uma retomada de investimentos que chegaria a R$ 75 bilhões entre 2013 e 2016 (Estado, 4/9/2012). Mas a grande atração parece continuar sendo o trem-bala Rio-Campinas, que, só ele, custaria R$ 27,6 bilhões, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Tudo isso seria parte do investimento total de R$ 401 bilhões em infraestrutura, com destaque para os setores de energia elétrica (R$ 158 bilhões), telecomunicações (R$ 74 bilhões) e transporte rodoviário (R$ 53 bilhões).

Mais uma vez é preciso insistir que falta a definição de estratégia nacional para os novos tempos em que se vive no mundo - onde os problemas de clima, energia, ambiente, alimentação e outros estão entrelaçados e exigem posturas adequadas às novas situações. A sensação que fica, ainda hoje, é a de que continuamos a viver uma mistura dos governos jusceliniano e janista, com ênfase absoluta em "desenvolvimentismo" e "política externa independente". Não é preciso discutir muito para concluir que os tempos são outros, como são outras as exigências prioritárias para um mundo conturbado, complexo e mutante. Nele o Brasil pode vir a ter condições excepcionais, graças aos fatores privilegiados de que dispõe - território, recursos hídricos, biodiversidade, possibilidade de matriz energética limpa e renovável. Basta olhar o recém-publicado atlas Amazonia Bajo Presión (editado pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada e coordenado por Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental) para ver que só na Amazônia brasileira esses fatores são imensos - mas já sob ataques em muitas frentes.
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