ARTHUR DAPIEVE
O GLOBO
‘Um livreiro ambulante como o França havia se tornado um belo de um anacronismo’
Jornalistas leem menos do que gostariam. Depois dos outros jornais, das revistas semanais, do material de arquivo, do resultado das pesquisas, dos diários oficiais, dos boletins de ocorrência, dos projetos de lei, das medidas provisórias, dos programas partidários, dos relatórios das CPIs, dos processos judiciais, dos balanços das empresas, dos manuais de instrução, dos boletins médicos, dos releases, das dezenas de mensagens diárias e, quando se tem sorte, dos livros a resenhar, sobra pouca vista para ler de verdade, ler por prazer aquele livro vadio, seja não ficção, literatura, poesia.
Temo que a partir de agora os jornalistas cariocas passem a ler ainda menos. Porque aposentou-se o França, o livreiro ambulante que corria as redações dos jornais, revistas e emissoras de rádio e TV do Rio havia 40 anos. Carlos Alberto França foi o único “colega de trabalho” presente em todos os meus empregos na imprensa. Lembro-me dele no sexto andar do prédio do velho “JB”, ali onde hoje funciona o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, na Avenida Brasil. Lembro-me dele e de sua bolsa na sucursal da “IstoÉ”, nas redações da “Veja Rio”, do GLOBO, do extinto site NO. Pois o incansável França cansou e foi perdendo a saúde. Merece repouso.
Para quem não foi jornalista no Rio de Janeiro nas últimas quatro décadas, vou explicar melhor o que fazia o França. Ele selecionava as últimas publicações, com um olho atento àquelas que mais obviamente poderiam interessar aos coleguinhas, fossem livros-reportagem, livros de História ou livros escritos por outros coleguinhas (que nunca venderam tanto, tenho certeza, graças inclusive ao doce constrangimento da pergunta “não vai comprar o livro do Dapieve?”). Conhecendo cada um, o França ia de mesa em mesa oferecendo este ou aquele título. Bingo. Seu índice de acerto era enorme.
Para um profissional cuja carga de trabalho jamais foi pequena e que costuma sair da redação depois de o comércio fechar ou de a noite de autógrafos ter acabado, o França não só valia por uma visita semanal a uma boa livraria de rua (ou de shopping) como por uma boa batida de perna pelos sebos da cidade. Porque ele também aceitava encomendas de títulos fora de catálogo e saía feliz a campo. Tenho a impressão de que quanto mais difícil de achar, maior era a sua satisfação. “Sabe aquele primeiro volume esgotado do Walter Benjamin na Brasiliense? Achei!”, disse-me certa tarde. Antes dos sites de vendas de livros, o França era a Livraria Cultura mais a Estante Virtual.
Contemplando as estantes abarrotadas cá em casa, consigo me lembrar das circunstâncias em que quase todos os títulos foram ganhos ou adquiridos (coisa de neurótico, certo). O França rivaliza até com a antiga Entrelivros, com a Travessa, a Argumento ou a Amazon. Quando precisei juntar a bibliografia do meu mestrado, chamei o França. Quando precisei editar uma retrospectiva do século XX para este jornal, chamei o França. Muitos de nós devemos a ele um bocado de nossa cultura e informação (sempre falha, certo). Porém, era ele que volta e meia dava um presentinho de Natal aos fregueses mais fiéis. Está aqui na prateleira o pequeno volume de bolso dos “Lusíadas”, capa dura, da Lello & Irmão Editores, do Porto, impresso em 1980.
Décadas atrás, no tempo em que produtos importados eram menos acessíveis, as redações tinham os seus contrabandistas de confiança, os caras que passavam na mesa dos jornalistas que bebiam socialmente — e alguns era incrivelmente sociáveis — para vender uísque escocês. Alguns aceitavam escambo por LPs ou relógios usados. Isoladas do mundo, na falta de tempo e na abundância do espaço, as redações também ofereciam oportunidades de negócios para quem vendia empadas, sanduíches naturais, calcinhas. O negócio do França era o livro (e, com os anos, os deliciosos doces de sua esposa).
No momento em que os gigolôs do apocalipse tanto falam, babando, no “fim do livro” ou no “fim das livrarias”, como se a literatura fosse sinônimo de um objeto de papel ou como se o negócio fosse apenas vender livros e não reunir pessoas, um livreiro ambulante como o França havia se tornado um belo de um anacronismo. Havia algo de romântico naquela figura discreta que, no meio do pega pra capar dos fechamentos, se aproximava para nos oferecer “Fama e anonimato” ou “O deserto dos tártaros”.
Mais de dez anos atrás, jogando conversa fora com ele e com o Paulo Roberto Pires na redação do NO., na Avenida Presidente Wilson, eu prometi escrever uma coluna sobre o França no dia em que se aposentasse. Promessa é dívida, meu amigo, mas a minha dívida contigo é muito maior do que 3.877 toques, sem contar os espaços.
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