MARCELO COUTINHO
O Globo
Em política, os atores calculam sempre perdas e ganhos futuros, mas suas expectativas começam a ser forjadas no passado. Isso explica por que uma Fujimori chegou perto de reconquistar o poder no Peru, mas não conseguiu. O que vincula diferentes tempos políticos são as memórias institucionais, mais do que o desempenho da economia ou as instituições estabelecidas. Tais memórias originam-se na política do que Prigogine chamou na física de flutuações e bifurcações em sistemas auto-organizáveis. Para o Nobel de Química, o tempo é irreversível, porém criativo.
Em tese de doutorado, defendida em 2005 no Iuperj, diferenciei as trajetórias políticas do Brasil e do vizinho andino. O objetivo era entender processos cujas diferenças em termos de resultados não poderiam ser explicadas pela intencionalidade dos atores ou determinação estrutural. Embora tenhamos instituições semelhantes (forte presidencialismo multipartidário) e a economia peruana tenha crescido bem mais do que a brasileira, inclusive diminuindo a pobreza, percorremos caminhos políticos opostos desde as crises de 1992 porque desenvolvemos memórias distintas a partir de então.
O comportamento político peruana de polarização ainda é refém do autogolpe do ex-presidente Alberto Fujimori. É justamente a memória da descoordenação que tem guiado a democracia peruana, bastante instável. As eleições deste ano deram outra prova disso, já que o governo sequer apresentou candidatura e houve uma divisão das forças do centro político, que juntas teriam vencido com facilidade.
Sem coordenação pelo centro, abriu-se espaço para duas frentes extremas chegarem ao segundo turno, incluindo o nacionalista Ollanta Humala, a quem também se atribuiu pouco apreço às instituições democráticas. Nada disso foi por acaso, fruto de ações atomizadas ou de novas microestruturas, para usar os termos do cientista Prigogine, mas antes resultado de memórias institucionais não cooperativas que balizam o jogo político naquele país.
Já o Brasil experimenta desde 1992 uma virtuosa institucionalização da democracia, a partir de novos padrões de comportamento cooperativos, apreendidos com a queda de Collor e as grandes coalizões nacionais que passaram então a virar rotina na nossa República. Isso se deu menos pela tradição no país do que pelo cálculo que se faz no meio político, sobretudo por quem atuou no impeachment, quanto ao bem da distribuição e coordenação do poder.
Ao contrário do Peru, a política brasileira é disputada pelo centro e para o centro. Não à toa, é notável a continuidade do presidencialismo de coalizão entre Itamar, FHC, Lula e Dilma. Representam até aqui um só período histórico, com coalizões crescentes. Se a memória de 1992 trouxe inédita convergência e estabilidade ao país, também reduziu o Congresso e os partidos políticos a quase um único papel: garantir que o Poder Executivo não se distancie da diversidade de forças existentes na nação.
Ao contrário do que imaginava Marx em "Dezoito brumário", não é a tradição de todas as gerações dos mortos, mas a memória dos vivos que oprime os seus próprios cérebros, e nem sempre como pesadelo. Por isso, a História não se repete como farsa, mas como resultado daquilo que os indivíduos aprendem ao longo da sua existência. Brasil e Peru são casos recentes onde o capitalismo mais prospera na região (Chile à frente), em que pesem as discrepantes soluções políticas encontradas que produziram variedades de democracia.
Embora seja difícil, como novo presidente eleito Humala deve antes de tudo buscar a conciliação de um país dividido, interrompendo um longo ciclo de fragmentação. As memórias institucionais são perecíveis e geram após algum tempo retornos decrescentes, onde mudanças podem ocorrer. Quase vinte anos depois das crises de 1992, é tempo de reformas políticas que façam aumentar a inclusão cooperativa no governo peruano e melhorar a qualidade da representação parlamentar brasileira.
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