terça-feira, 16 de agosto de 2011

O desafio americano: reinterpretando Churchill


Lourdes Sola
O Estado de S. Paulo



Momentos de grande significação política e cultural tendem a ser apreciados apenas em retrospecto. Já na economia ocorre o contrário: a prospecção do futuro pelos agentes de mercado assombra o presente e afeta as decisões econômicas e políticas futuras. Como avaliar, então, a conjunção de episódios extremos e sem precedentes como o rebaixamento dos títulos da dívida soberana dos Estados Unidos pela Standard and Poor"s e o impasse entre democratas e republicanos no Congresso americano? Ambos os episódios indicam que o timing e a percepção do que seja "risco político", esta dominante entre os agentes de mercado, prevaleceram sobre os dos demais atores envolvidos, políticos eleitos e o eleitor mediano.

Não é de surpreender, portanto, que o novo ciclo de crises na zona do euro tenha dado impulso a um quase consenso entre os analistas: a ênfase no déficit de liderança nos EUA e na Europa. Na mídia especializada, uma das capas da revista britânica The Economist diz tudo: Angela Merkel e Barack Obama são travestidos em quimono, por analogia com o declínio econômico do Japão. (Uma imagem de mau gosto, nas circunstâncias pós-terremoto-tsunami-radiação.) Há hoje duas variações desse mantra. Por um lado, os clamores contra a classe política americana, por um tipo de brinkmanship indiferente aos interesses do país e ao alcance sistêmico de suas decisões; por outro, mais cá do que lá, o reducionismo econômico leva à idealização das capacidades do governo da China - cujo sistema político e econômico é o mais opaco dos integrantes do G-20.

Essas análises padecem de uma dupla limitação: a qualidade da liderança é pensada em termos abstratos e também carecem de uma perspectiva temporal a partir da qual os episódios individuais são mais inteligíveis. Liderança importa, por isso vale a pena listar algumas questões que ajudam a ressituar o seu papel em Washington, em termos da arte do possível. Lembrando, antes, que essa arte se faz mais complexa em democracias, porque mais midiatizada por valores, por instituições que garantem pluralismo e concorrência política - e pela mídia. Seus resultados são inevitavelmente mais lentos. É assim que contextualizo o juízo fleumático de Winston Churchill motivado pela demora dos EUA em entrar na 2.ª Guerra: "Os americanos fazem a coisa certa depois de esgotar todas as outras possibilidades".

O primeiro passo é ter claro o que mudou desde 2008. Foi a natureza da crise que, de financeira e centrada no choque de descrédito de instituições privadas (e das agências de rating), passou a ter forte dimensão fiscal. Hoje é crise de governos. Isso obriga a uma redefinição das capacidades do Estado. Mas recapacitar o Estado em contexto democrático é um processo lento, que não se esgota na reestruturação do seu sistema de gastos e de financiamento. Envolve também uma mudança no padrão de relações com a sociedade e, no caso dos EUA, se faz num quadro doméstico de relativo equilíbrio entre os Poderes. Recapacitar o Estado nessas condições (deixo de lado seu papel internacional) é politicamente viável sob duas condições facilitadoras: que haja Estado e que seja possível às lideranças políticas criar um horizonte temporal de crescimento para um eleitorado polarizado. A primeira condição está presente nos EUA, mas não na União Europeia, que não é um Estado, mas uma construção política inacabada. Suas lideranças se confrontam com o desafio de empreender mais um ciclo de delegação de soberanias, agora fiscal, com a anuência dos respectivos eleitorados. O que está em questão aqui é a legitimação de um futuro Estado federado.

Será possível criar um horizonte temporal de crescimento para o eleitorado americano? A resposta requer que se situem algumas das mudanças que explicam a polarização do quadro político.

Pesquisas do Pew Center indicam a escala das transformações da sociedade americana a partir de meados dos anos 1980. Uma proporção crescente de americanos percebe sua sociedade como dividida em termos econômicos - entre "os que têm" e os "que não tem" -, incluindo-se na segunda categoria. Os dados sobre concentração de renda confirmam a percepção, mas seu caráter inédito deve ser analisado à luz das características distintivas da sociedade americana até então. Uma sociedade que nasceu ancorada em valores igualitários (entre os brancos), pautada pela rejeição de quaisquer indícios de divisão social em bases econômicas, porque avessa à "guerra de classes"; e um sistema de valores que reduz o fracasso e o sucesso a uma questão de responsabilidade individual.

O economista Raghuran Rajan (Valor, 5-7/8) aponta a causa dessa transformação: o hiato entre as exigências crescentes do mercado de trabalho nos últimos 20 anos em termos de capacitação profissional e as respostas precárias do sistema educacional. Importa que esse hiato tenha passado despercebido pelas classes médias e pelos políticos enquanto foi possível sustentar altos níveis de consumo com créditos ancorados na casa própria. Até o estouro da bolha imobiliária ficaram abaixo do radar de ambos os atores dois desdobramentos irreversíveis: o declínio da velha economia de empregos de baixa capacitação e bons salários e sua contrapartida, a emergência de "ricos" que são "trabalhadores ricos", não ociosos. Em tempos de vacas magras, estes são susceptíveis ao mantra republicano contra qualquer aumento de imposto: seu sucesso é questão individual.

Dos "have nots" não se pode esperar que entendam intuitivamente mais do que a perda de seu status, por morte súbita. A tarefa de explicar, criando um horizonte de crescimento e de reintegração ao sistema, cabe aos políticos. Já, porque "dar dinheiro aos banqueiros" é mais fácil de explicar em democracia, por ser esse um sistema com potencial autocorretivo, garantida a alternância no poder, os críticos aprendem.

PH.D. EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE DE OXFORD, PROFESSORA APOSENTADA DA USP, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
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