SILVIANO SANTIAGO
O Estado de S.Paulo
A publicação do opúsculo Ideia de Uma História Universal do Ponto de Vista Cosmopolita (Martins Fontes, 2011), de Immanuel Kant, realça uma bela página do pensamento brasileiro. Refiro-me ao terceiro capítulo de Minha Formação (1900), de Joaquim Nabuco, intitulado Atração do Mundo. As nove proposições avançadas pelo filósofo germânico liberam o "fio condutor" de que se vale Nabuco para refletir sobre o modo como o brasileiro, caso perca a menoridade política, pode transformar-se em sujeito da história nacional, embora ainda fique sujeito à formação ministrada pela Europa moderna e à dependência da cultura ocidental. A ambivalência dos significados de "sujeito" (autonomia /subordinação) indica que Nabuco se aproxima de Machado de Assis e teria em polo oposto o nacionalista José de Alencar e o antropófago Oswald de Andrade.
O caudal cosmopolita eurocêntrico também deságua na escrita rememorativa da vida nômade levada por Nabuco, dividida entre os dois lados do Atlântico oitocentista. Observa ele: "De um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país". Na autobiografia, Nabuco se rende ao movimento e processo de universalização da história ocidental e, cidadão letrado, se entristece com a função que o Brasil teve como colônia e se entusiasma pelo papel que o país livre pode vir a ocupar. O movimento da escrita de Nabuco retoma a Primeira Proposição kantiana: "Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a um dia se desenvolver completamente e conforme um fim". Confessa Nabuco: "Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo". Se se atualizar a telegrafia pela televisão e a internet, teremos o brasileiro letrado de hoje.
Por a ideia de uma história universal modelar a vida de Nabuco (e não o personagem fictício de Machado de Assis), o estudante de Kant, antes de dar continuidade à leitura comparativa dos dois autores, consultaria o ensaio de Michel Foucault intitulado Qu"Est-ce Que les Lumières?. Neste, o francês analisa dois textos sucessivos sobre o Iluminismo, assinados pelo mesmo Kant. Datado de 1784, o primeiro evita definir o que seja o Iluminismo para discorrer sobre o modo como o movimento configura o século 18 pela questão do seu presente. Pergunta Kant: O que se passa agora? E o que é esse "agora" que define o momento no interior do qual nós e os contemporâneos somos e em que eu escrevo? O texto seguinte de Kant vem datado de 1798. O filósofo indaga sobre a causa possível para o constante progresso do gênero humano. Ela não está na trama teleológica da História, mas em acontecimento singular (a Revolução Francesa), a ser lido como "signo" da causa que assegura o progresso como tendência geral do ser humano. Como signo, a revolução rememora, demonstra e prognostica o progresso permanente do homem.
Atualidade e finalismo se suplementam na ideia de uma história universal cosmopolita.
Na leitura do primeiro texto mencionado, Foucault salienta que, ao se autodenominar Iluminismo e ganhar consciência de si, o movimento procura ser um processo cultural singular. Situa-se em relação a seu passado e a seu futuro e designa as operações políticas que deve levar a efeito internamente. O uso privado da razão se soma ao exercício dela no plano público e torna o filósofo elemento e ator de um processo crítico. Não pertence a essa doutrina ou àquela tradição nem a uma comunidade humana. Pertence a um "nós" que, no caso de Nabuco, ultrapassa o estágio da menoridade política decorrente da independência da nação. A escrita subjetiva ilumina a atualidade, que se torna para o filósofo - e para o memorialista brasileiro- objeto de análise.
No texto de 1798, Kant desqualifica o modo como o pensamento tradicional enxerga a revolução para afirmar que ela não está na queda dos impérios, ou nas grandes catástrofes que levam os Estados bem estabelecidos a desaparecerem. Está em acontecimentos menos grandiosos e menos perceptíveis. Afirma Kant: "Não esperem que esse evento consista em gestos nobres ou em crimes importantes cometidos pelo homem, motivo para que o que era grande se torne pequeno e o que era pequeno se torne grande..."
Significativo na revolução - infere Foucault das palavras de Kant e o leitor das memórias de Nabuco - "é o modo pelo qual ela se faz espetáculo e passa ser acolhida pelos espectadores a seu redor. Estes dela não participam, mas a veem, assistem a ela e, para o bem ou para o mal, se deixam arrastar". O fundamento da revolução está no transbordamento duma disposição moral da humanidade. Faz irromper no mundo, diz Kant, "uma simpatia de aspiração que beira o entusiasmo". E continua: "a partir das aparências e dos signos precursores de nossa época, sem espírito profético, , posso predizer ao gênero humano que ele chegará a um estado tal que os homens possam se dar a Constituição que eles querem e a Constituição que impedirá a guerra ofensiva".
Voltemos agora os olhos para as páginas finais do opúsculo de Kant, ora em português. Lá lemos: "o louvável cuidado do pensador com os detalhes que escrevem a história de seu tempo deve levar cada um naturalmente à seguinte inquietação: como nossos longínquos descendentes irão arcar, depois de alguns séculos, com o fardo da história que nós lhes deixaremos". Em Nabuco, o uso da razão no plano privado ganha a tribuna para ser força crítica contra o escravismo e requer as memórias para se escrever como reflexão crítica sobre país periférico propenso ao bem-estar da elite no atraso. Afiança Nabuco que, em sua vida, viveu "muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história".
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