GAUDÊNCIO TORQUATO
O Estado de S.Paulo
A cena parece irreal. Na maior democracia do Ocidente, ícone do capitalismo mundial, a pobreza espraia-se por territórios ocupados por uma classe média que, menos de cinco anos atrás, exibia vitalidade e brandia com orgulho a bandeira dos direitos. A paisagem agora é de devastação. Milhares de famílias nos Estados Unidos perderam suas casas e hoje vivem em acampamentos. Na Inglaterra, o flagrante de lojas estilhaçadas, prédios e carros incendiados borra a imagem de Londres, uma das capitais do glamour mundial. Levantes no mundo árabe, revoltas em Tel-Aviv, manifestações violentas na Grécia e na Espanha, piqueteiros batendo panelas no Chile e até movimentos de insatisfação na controlada China parecem expressar o que o professor Samuel P. Huntington designa, em seu clássico O Choque das Civilizações, como paradigma do "puro caos": quebra da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente, violência étnica, religiosa e civilizacional, declínio de confiança e uso da força.
Mas esses são os efeitos, fato que sugere indagar: que fatores explicam a escalada de barbárie que invade parcela do planeta neste início de segunda década do século 21?
O painel de respostas é vasto, incluindo aspectos abrangentes, como a crise da democracia representativa - pasteurização de doutrinas e ideários, enfraquecimento dos partidos, declínio dos Parlamentos, desmotivação das bases eleitorais -, e questões imediatas com desfechos negativos, como a especulação imobiliária dos anos 1980, financiada por bancos japoneses e responsável pela expulsão de contingentes de áreas urbanas. Preconceitos culturais também deflagram ações violentas, como a que ocorreu na Noruega, com a morte de 87 pessoas vitimadas pelo serial killer nórdico. Mas a razão econômica é o fiel da balança, como se constata no rombo da economia americana em 2008: exagerado volume de empréstimos imobiliários não honrados por compradores. Razões pontuais (e regionais) explicam as mobilizações nos espaços - no mundo árabe o clamor por liberdade tomou conta das ruas -, mas fica evidente a existência de um fio comum que une espíritos rebeldes e grupamentos revoltosos: o capital global.
Eis aí o novo parceiro do jogo do poder mundial. A socióloga americana Saskia Sassen (Estado, 14/8) aponta-o como figurante que substitui a burguesia dos tempos em que o conflito de classes tinha na outra ponta o proletariado. Já este cede vez às massas difusas, compostas por minorias étnicas e de gênero, classes médias rebaixadas, jovens que "vivem uma vida pior que a de seus pais", imigrantes e moradores de regiões sem infraestrutura de serviços. A nova composição que enche as ruas insufla os pulmões do planeta sob o fermento de enormes carências da urbe.
Podemos também classificar esse capital global como produto do sistema que o cientista social Roger-Gérard Schwartzenberg designa como tecnodemocracia. Ou seja, é a moeda que serve a um triângulo que junta o sistema político, a alta administração do Estado e os círculos de negócios. As mazelas geradas por esta nova concepção capitalista, centrada em volumosos capitais transnacionais, provoca impactos violentos no tecido social, atingindo, sobretudo, as classes médias, cujas condições de vida descem vertiginosamente a escada da degradação. O paradoxo se estabelece.
Nos EUA, onde despontaram como os arquitetos do maior edifício democrático do universo, os contingentes médios enxergam o governo tirando dinheiro dos contribuintes para salvar os bancos, deixando-os à míngua. A concentração de capital se adensa. Em 1980, 1% do topo da pirâmide ganhava 12% da renda de Nova York; hoje, o mesmo número abocanha 44% de toda a sua riqueza.
Ao lado do adensamento do capital, a globalização deflagra uma revolução no sistema de cognição da comunidade internacional. O toque mágico é o acesso a informações tempestivas, que propicia a milhões de usuários das redes sociais integração de sentimentos e códigos. A conquista tecnológica não tem, porém, o condão de padronizar gostos, a não ser em campos restritos de interesse comum, como o entretenimento. Cada povo usa a ferramenta para uma expressão própria. Os embates que ocorrem em países centrais e periféricos, em democracias ou em regimes ditatoriais, condizem com as aspirações das comunidades. São manifestações plurais. Os jovens pobres e excluídos dos bairros londrinos desmontam seu hábitat sob motivação diferente da dos grupos que acorrem às ruas do mundo árabe.
Neste ponto, cabe uma interrogação: por que nos EUA, pátria por excelência da liberdade de expressão, o manto do silêncio cobre núcleos que deveriam pôr a boca no trombone? Resposta: ali a lei é cumprida com rigor. Locução livre, tudo bem; arruaça, não. O receio do cidadão de se desviar da régua da rotina para tomar as ruas - mesmo sob razão de consciência e sobrevivência - o mantém retraído. A indignação acaba sendo canalizada para o duto político. A direita sobe alguns degraus, como se pode perceber pelo relevo conferido ao Tea Party.
O estado de insolvência que envolve economias centrais e os distúrbios em praças civilizadas e incivilizadas impõem a pergunta: e o Brasil, como se comporta na moldura? Não dá para escapar pela tangente e argumentar que nossa terra é uma ilha de segurança no oceano revolto. É evidente que ondas concêntricas, formadas pelos sismos, acabarão batendo em nossas plagas. O País pode se dar ao luxo de exibir sua dimensão continental, riquezas naturais incomparáveis, reservas de US$ 350 bilhões e uma classe média inflada com a inserção de 32 milhões que saíram das margens sociais. E dizer que alargou o meio da pirâmide, ao contrário do que ocorre com a conformação social de outras nações. A questão é: sustentará a posição? Não há o risco de o dragão político devorar o leão econômico? Na era das incertezas, tal risco é possível. E as distâncias entre o Bem e o Mal são curtas. O éden fica ao lado do inferno.
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