FABIO GIAMBIAGI
O GLOBO
Uma das características da balbúrdia ideológica em que o Brasil mergulhou nos últimos tempos é a ausência de um debate preciso acerca das escolhas do país. Não tenho nada contra - muito pelo contrário - a identificação de elementos em comum entre diferentes forças políticas. Várias vezes escrevi em favor da procura de consensos, e o fato de existirem grupos diferentes que se revezam no poder e comungam certas políticas fala bem de um país. As boas relações da presidente Dilma com FHC fazem bem à alma nacional. Sou de ascendência da Argentina - onde a recusa a sentar à mesa com quem pensa diferente é cultuada como valor pelos mais diferentes grupos - e a vida me ensinou a ter ojeriza àqueles que fazem da intransigência um estilo de vida. Na democracia, não há nada melhor que o diálogo civilizado.
Isso é uma coisa. Mistificação, porém, é algo diferente. O PP e o PSOE na Espanha, a democracia cristã e os social-democratas na Alemanha ou, aqui perto, a direita de Piñera e a esquerda de Lagos e Bachelet podem se revezar no poder e conservar um conjunto importante de políticas de Estado - e não do governo A ou B -, mas deixando claro o que muda e o que não muda, reconhecendo os méritos do adversário e definindo bem quais políticas são patrimônio coletivo da sociedade e qual é a contribuição efetiva que cada partido dá ao país nos anos em que exerce o poder.
Uma das coisas que é preciso esclarecer no Brasil é a questão do "modelo de desenvolvimento". O que acabou por se estabelecer como "sabedoria convencional" é que o governo FHC teria tido uma preocupação "obsessiva" com o ajuste e teria "arrochado" o gasto público e que depois de 2003 teria havido maior distribuição de renda e uma política fiscal voltada para a maioria da população. Em outras palavras, que um modelo "concentrador de renda" teria sido substituído por um modelo "desenvolvimentista".
A teoria dominante é que isso teria se dado em função, basicamente, de três coisas: a) o maior aumento do gasto público, livre das "amarras do FMI"; b) a política de valorização do salário mínimo; e c) o compromisso oficial com a melhora da distribuição de renda. Tal argumentação me traz à memória a frase de um antigo professor meu de História Econômica, que contestando a interpretação de um famoso livro sobre a evolução econômica do país, dizia, com fina ironia: "A explicação é muito bonita; claro que seria melhor ainda se fosse verdadeira."
Nada daquilo dito acima corresponde à verdade, uma vez que os dois governos foram muito parecidos nesse sentido: o gasto primário cresceu em termos reais em torno de 5% a.a. em cada um dos dois governos (FHC e Lula) e, em ambos, com predomínio do gasto social; o salário mínimo aumentou, para ser preciso, a uma média real anual de 4,7% nos oito anos de FHC e de 5,5% nos oito anos de Lula (o que, convenhamos, não é uma diferença que caracterize uma "mudança de modelo"); e c) o Índice de Gini das pessoas ocupadas com rendimento, conforme a PNAD, caiu de 0,60 para 0,56 com FHC e de 0,56 para 0,52 com Lula.
O governo Lula trouxe ao Brasil ganhos inquestionáveis. Entre outras coisas, eliminou a dívida externa líquida, reduziu em 1/3 a dívida líquida do setor público, e no seu governo houve um boom do emprego e a formalização do mercado de trabalho aumentou muito. Seus defensores não precisam fazer alusões a respeito de "mudanças de modelo" nem criticar as "políticas neoliberais" para fazer a apologia do período 2003/2010. Mais rigor e menos mesquinharia fariam bem ao debate. E, principalmente, aqueles que se animaram com as políticas - essas sim, diferentes - implementadas no contexto da crise de 2009 deveriam lembrar Terêncio - antigo dramaturgo de Cartago, que dizia que "hoje há grande demanda de pessoas que fazem o errado parecer certo" - e saber que, se o aumento real do gasto não for contido, o Brasil poderá pagar um alto preço daqui a alguns anos; se tiver que financiar um déficit em conta-corrente, que poderá chegar a US$100 bilhões/ano, e o resto do mundo nos perguntar, espantado ao constatar o dolce far niente local em matéria de reformas depois de 2003: "Mas o que vocês fizeram para se preparar para o futuro, nos anos dourados em que os astros sorriram tanto para o Brasil?"
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