ARNALDO JABOR
O Estado de S.Paulo
Minha lembrança mais antiga sou eu mesmo encolhido em minha cama de menino, no meio da noite, ouvindo beijos e gemidos de meus pais se amando no quarto ao lado.
De manhã, fui acordado por minha mãe, trêmulo de angústia. Ela não era mais a mesma; era uma mulher diferente, com a camisola transparente por onde se viam seus seios brancos.
Meu pai era oficial da Aeronáutica e, grande piloto, voava de rodas para cima, fazendo piruetas sobre nossa casa. Eu e minha mãe, juntos no jardim, víamos o monomotor desenhar parafusos no céu para ela, pálida de orgulho e paixão, até que uma das asas caía e o avião vinha despejando fogo sobre nós, esmagando minha mãe no meio do jardim de rosas, sobrando apenas eu, entre destroços e chamas.
Com medo de sonhar de novo, tentava não dormir, mas o cansaço me vencia, e lá vinha o avião em sangrento parafuso em meu sono e eu acordava chorando por meus pais mortos no jardim.
Nessa época, adquiri um estranho hábito: parir-me. Logo que minha mãe me beijava e fechava a porta, tomava-me a volúpia de ficar sozinho no quarto como um clandestino; era como se eu traísse minha mãe comigo mesmo. E aí começava meu ritual de nascimento.
Eu despia o pijama assim que ela saía e começava o parto. Imaginava-me inteiramente liso, como raspado para uma cirurgia e, de dentro de meus membros, saía um outro corpo, como a borboleta da crisálida. Meus pés surgiam de dentro dos velhos pés, minhas panturrilhas rompiam a frágil casca da pele e emergiam fortes e prontas para gols de bicicleta que eu via na TV e com o peito do Tarzan, que eu via no gibi a combater gorilas. Era assim que conseguia dormir, imaginando o que eu não era. Eu era 'nada' e tinha de me inventar. Sentia-me um órfão; seriam eles meus pais mesmo?
Minha mãe falava muito na ex-noiva de meu pai, Ivone, creio. Ele largara-a praticamente na porta da igreja, apaixonado por minha mãe que, apesar do orgulho de 'favorita', vivia com medo da volta da 'rival'. Comecei outro delírio: se meu pai não tivesse conhecido minha mãe, eu não existiria; e, se ele tivesse casado com Ivone e minha mãe com outro homem e tivessem filhos, haveria dois pedaços de mim soltos no mundo - duas pessoas com metade do que eu sou, a parte de minha mãe e a parte do meu pai. Como seriam os dois pedaços de mim? E eu imaginava seus rostos, mas vivia no fundo do nada.
Queria ser parte da vida de meus pais, mas não conseguia entrar.
Não se largavam um minuto, mas não se entendiam. Com a TV, o cinema americano, os beijos ardentes de amor romântico, a nudez nas praias, os casamentos já não tinham a solidez obediente do passado, com pai severo, mulher calada e filhos reprimidos. Afinal, o que faltava entre meus pais? Eles se amavam, mas não sabiam 'como'. Era como se tivessem saudade de um amor que não acontecera. Eu via as inúmeras brigas por nada, seguidas de soluçantes reencontros, de abraços convulsos, via os ciúmes de minha mãe da prima gostosa de maiô duas peças, vi a poltrona de veludo em que ele meteu o pé enlameado em fúria, via as tardias chegadas de meu pai, voltando de misteriosas reuniões, vi minha mãe procurando alívio numa médium espírita que lhe dava conselhos com voz grossa de 'caboclo', minha mãe sofrendo com a novela de rádio, minha mãe ao telefone com minha tia, chorando, na certeza de que ele tinha uma amante, via o silêncio de meu pai vendo TV de tarde, não respondendo mais às falas compulsivas de mamãe, que me disse, orgulhosa e triste: "Seu pai foi o único homem que eu beijei, mas ele tem outra, tem outra..."
Uma noite, já adolescente, segui meu pai. Seu carro parou na praia e uma mulher entrou. De madrugada, vi pela janela meu pai voltando no velho Ford 61. Chovia muito. Ele saltou do carro e ficou parado na chuva, sem entrar. Ele parecia sentir prazer de se molhar ali, na porta de casa. Da janela, eu gritei: "Papai, entra!" Demorou ainda, mas acabou entrando, ensopado e trôpego de bebida e logo eu ouvia minha mãe no quarto, chorando alto: "É a Ivone! Ela voltou pra te levar! É ela!"
Meu pai continuou a sair de noite e mamãe chorava: "É ela!... Ivone!" (como se depois de tantos anos, Ivone, velhinha, 'fizesse a vida' na Praia de Copacabana).
Minha mãe se perdia em mais delírios em sua solidão amargurada, diante do silêncio duro de meu pai. "Ele não aguenta mais" - eu pensava.
Um dia, mamãe começou a morrer - "dois a três meses no máximo" -, disse o médico. Meu pai não deixou ninguém cuidar dela e foi seu perfeito enfermeiro até a morte, quando vi meu pai chorar alto, mas sem lágrimas no rosto. Era um gemido seco - dizem que octogenários não têm lágrimas. Trancou-se em casa e não queria ver ninguém. "Vamos dar uma volta, pai, tomar um chope..." Não havia hipótese. Durou meses isso. Eu e minha irmã queríamos visitá-lo: "Não preciso, não quero ninguém aqui..!"
Um dia, achei uma chave de sua casa e fui surpreendê-lo. Abri a porta e a casa estava vazia de móveis. Só um sofá e meu pai sentado ali.
Em todas as paredes da casa havia retratos de minha mãe, muitas dezenas - meu pai tinha ampliado todas as fotografias de mamãe, seu rosto enchendo as paredes até o teto: ela sorrindo num navio, ela de casaco de pele, ela jovem e linda de vestido de baile, ela e o casamento, ela no Pão de Açúcar, ela em closes enchendo as paredes da casa vazia. Sentei ao lado de meu pai no sofá. Ele não falou nada, mas deu um gemido seco como no dia do enterro.
Semanas depois, eu quis voltar: "Não precisam vir aqui!" - , disse ao telefone.
Fui assim mesmo.
A casa estava vazia e a TV ligada muito alto com um programa vespertino, Jeannie É um Gênio, que ele gostava de ver.
Papai continuava sozinho no sofá; só que agora estava caindo para o lado, a luz da TV sobre ele, muito pálido, imóvel, com um filete de sangue saindo do nariz. Em volta, como um céu estrelado, dezenas de rostos de minha mãe sorriam para ele. Senti o peso de minha orfandade. Era como se eu não existisse. E pensei nos dois pedaços de mim, soltos no mundo, se meu pai e minha mãe nunca tivessem se encontrado.
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