terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Flechado no coração

JOSÉ DE SOUZA MARTINS
O ESTADÃO


Novas imagens de índios isolados resgatam a trágica morte de Nicolás ‘Shaco’ Flores na Amazônia peruana


A morte do índio peruano aculturado da tribo matsigenka, Nicolás “Shaco” Flores, flechado no coração por um índio mashco-piro, isolado, repõe o problema da dimensão trágica do encontro de culturas. A etnia de Nicolás vive no parque indígena do Rio Manu, na Amazônia peruana. Os mashco-piro, que são entre 100 e 200 indivíduos, mantinham-se isolados na mata e começaram a aparecer nas praias do rio, onde foram fotografados, aparentemente empurrados pela penetração das madeireiras, das petroleiras e das mineradoras. Estão se deslocando, portanto, para uma área devassada pela frequência de missionários, turistas e empregados das empresas nela interessadas.

Peruano matinha comunicação verbal com os mashco-piro

Entidades de defesa dos povos indígenas, como a Survival International, têm chamado a atenção para a questão dos povos isolados nessa parte da Amazônia e da Amazônia brasileira. No lado brasileiro da fronteira do Acre com o Peru, uma tribo foi descoberta recentemente e vem sendo acompanhada. Como lembrou o sertanista José Carlos Meirelles, em entrevista à BBC, durante sobrevoo na área acreana, é preciso antecipar-se aos grupos de motivação econômica, que põem em risco a vida e a sobrevivência dos grupos indígenas isolados. Localizá-los e fotografá-los para atestar sua existência e revelá-la aos governos e à sociedade é o único modo de antecipar-se ao contato destrutivo.

Nicolás e Meirelles são personagens dessa rara estirpe que compromete a própria vida no estabelecimento de pontes de civilidade que permitam a travessia dos seres humanos que estão confinados não só na selva, mas também num outro estágio da história da humanidade. A Amazônia ainda tem 50 grupos isolados, vítimas potenciais da pouco generosa e pouco civilizada concepção que os brancos e civilizados têm de si mesmos e têm do outro, do diferente, no caso, do índio.

Há indicações de que os mashco-piro tiveram contato no século 19 com seringalistas, que deixaram em sua história marcas da violência genocida. O antropólogo Glenn H. Shepard Jr., amigo de Nicolás de muitos anos, escreveu sobre a ocorrência. O índio matsigenka conseguia comunicar-se com os mashco-piro porque era casado com uma mulher piro e com ela aprendera o suficiente da língua para estabelecer uma comunicação verbal com eles. Sua morte faz refluir o contato para estágios primitivos da complicada relação entre civilizados e indígenas.

Nicolás fizera roças à beira do território de perambulação dos mashco-piro para que eles encontrassem alimentos e foi numa dessas roças que levou a flechada . Outras mortes desse tipo ocorreram entre cidadãos dessa pequena e generosa humanidade de tecedores dos liames da condição humana, os indianistas que nos revelam ao outro para que o outro se revele a nós. Darcy Ribeiro dizia que a sociedade branca, em nossa história, tem se apresentado ao índio através dos seus piores representantes, assassinos, estupradores, bêbados, os agentes da penetração da chamada civilização nas novas terras.

Há na memória social e mítica de muitas dessas tribos isoladas evidências de problemáticos contatos anteriores. Eles criaram uma peculiar e significativa imagem dos civilizados, inscrevendo-os em suas classificações da natureza - gentes, animais e plantas. Os xavantes, do Mato Grosso, escaldados da violência que os brancos lhes impuseram, ao classificá-los em sua estrutura imaginária do cosmos, incluíram-nos na família das onças. O branco se apresentou a eles como um animal predador, que mata por matar.

Muitos habitantes da fronteira étnica entendem ainda hoje que o índio não é gente. Ouvi isso várias vezes no Araguaia, nos anos 70. Em 1911, um bugreiro negro que dirigira o extermínio de uma aldeia inteira de índios kaingang, na região noroeste do Estado de São Paulo para passagem da estrada de ferro, disse com espanto ao oficial do Exército que o interrogou:”"Até parecia gente, senhor tenente!”

Não é estranho que um cacique suruí, de Rondônia, nos anos 1970, ao deparar-se com o grupo de indigenistas que procurava sua tribo para o primeiro contato, aterrorizado, ergueu a mão em gesto de paz e exclamou: “Branco, eu te amanso!”

Em 1982, Nicolás e alguns índios piro capturaram um velho mashco-piro e seu filho e os levaram à sua aldeia para mostrar-lhes os benefícios da civilização. O velho disse apenas, antes de ser devolvido à mata:

- Deixem-me em paz.
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