SERGIO FAUSTO
O Estado de S.Paulo
Encravada entre os Departamentos de Cochabamba e Beni, a reserva ecológica Territorio Indígena del Parque Nacional Isiboro Sécure encontra-se no centro de uma disputa política de grandes proporções na Bolívia. E o Brasil está envolvido nela.
Conhecido pela sigla Tipnis, o parque nacional é considerado também território original de povos indígenas que ali habitam desde tempos pré-hispânicos. Como tal, conta para sua proteção com mecanismos especiais definidos na Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia, entre eles o que exige consulta prévia aos povos originários para qualquer intervenção estatal que possa afetar seus territórios.
A disputa política em torno do Tipnis expõe as contradições internas do governo de Evo Morales, que chegou ao poder na crista de dois movimentos profundos que sacudiram a sociedade boliviana desde os anos 1990 e terminaram por redesenhar radicalmente o mapa político do país na primeira década do deste século: o nacionalismo estatal-desenvolvimentista, de um lado, e o indigenismo, com tintas ambientalistas, de outro (ambos flertando com o exercício direto da soberania popular, via referendos).
O presidente que usou e abusou de expedientes pouco democráticos para aprovar uma Constituição reconhecendo direitos diferenciados aos povos originais da Bolívia é o mesmo que tomou, ao arrepio da Lei Maior, a decisão unilateral de ordenar a construção de uma rodovia de aproximadamente 300 quilômetros entre as cidades de Villa Tunari, em Cochabamba, e San Ignacio de Moxos, em Beni, sem considerar que havia o Tipnis no meio do caminho e sem explicar convincentemente os benefícios econômicos e sociais da obra. Nem preocupação ambiental nem respeito aos direitos ancestrais, muito menos consulta direta ao povo.
A decisão de Morales provocou reação de um amplo leque de forças, incluindo não apenas ambientalistas, dentro e fora do país, e os habitantes do Tipnis, mas também organizações indígenas da região oriental da Bolívia, além de ex-integrantes de seu partido, agora organizados no Movimiento Sin Medo. Quebrou-se a momentânea unidade que levou o presidente a eleger-se duas vezes, com maioria absoluta dos votos. Tornou-se evidente que seu projeto de poder se assenta não no heterogêneo conjunto dos povos originários, mas na maioria quíchua e aimara do ocidente boliviano (o Altiplano Andino) e nos produtores de folha de coca da região do Chapare, perto de Cochabamba, zona de plantio ilegal, cuja produção abastece o tráfico de drogas, em tese favorecido pela construção da rodovia. Além, é claro, das Forças Armadas, que Morales soube cooptar com prebendas e benefícios.
No final do ano passado, depois de uma longa marcha em protesto contra a construção da rodovia, organizações indígenas do oriente boliviano foram recebidas com flores em La Paz por milhares de pessoas que saíram às ruas para se solidarizarem com os manifestantes. Pouco antes de chegar à capital, integrantes da marcha foram duramente reprimidos pela polícia e pelo Exército. Na defensiva, Morales teve de recuar e se viu forçado a promulgar uma lei declarando o Tipnis "intangível". Mas o presidente não desistiu. Está empenhado em ganhar um referendo marcado para maio, em que votarão os habitantes da região diretamente afetada, questão controversa, entre outras razões, porque nos últimos anos se avolumaram invasões do parque por cocaleros do Chapare. Acusam Morales de estar comprando apoios com distribuição de benefícios a comunidades específicas para ganhar o referendo. Uma nova marcha de protesto está marcada para 20 de abril.
Nesse cenário politicamente carregado, a imagem do Brasil tem sofrido grande desgaste. É que a construção da rodovia está a cargo da empreiteira brasileira OAS e grande parte do financiamento da obra provém do BNDES (US$ 330 milhões, num total de US$ 440 milhões, uma enormidade para a Bolívia). Há acusações de toda sorte, desde superfaturamento da obra até sua suposta imposição ao governo boliviano para atender ao interesse brasileiro de obter uma saída para os portos chilenos no Pacífico. No ambiente conturbado que se formou, pouco importa a veracidade das acusações. Todas elas conspiram para reforçar a percepção de que o Brasil atua como potência imperial na Bolívia, imagem que tem profundas raízes históricas. Pouco importa também, depois do leite derramado, ter o BNDES congelado o financiamento do trecho que corta o Tipnis e dito que o descongelamento só virá se respeitadas condições ambientais suficientes. Na terça-feira, surgiu um fato novo, mas não surpreendente: Morales anunciou a anulação dos contratos firmados com a OAS para a construção da rodovia, na tentativa de desarmar a marcha de 20 de abril.
O imbróglio deve nos servir de lição. A decisão de financiar a obra com dinheiro do BNDES foi tomada por Lula em acordo direto com Morales. Ao BNDES incumbiu-se o financiamento da obra. À OAS, sua execução, em substituição a outra empreiteira brasileira, a Queiroz Galvão, a qual o governo boliviano acusava de não cumprimento do contrato - como agora faz com a OAS. Que o Brasil se estava metendo num vespeiro era mais do que óbvio. Assim como é clara imprudência nos lançarmos eventualmente à construção de uma hidrelétrica num afluente boliviano do Rio Madeira, promessa de Lula para que Morales aceitasse a construção de Jirau e Santo Antônio, do lado brasileiro do mesmo rio, não obstante os riscos ambientais para a Bolívia.
A lição a tirar é que voluntarismo político e apetite empresarial não fazem boa política externa. Não é fácil operar numa região em que alguns governos se comportam de maneira especialmente idiossincrática. Por isso mesmo, maior prudência e melhor compreensão das dinâmicas políticas locais não fariam mal algum ao Brasil.
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