FERNANDA TORRES
REVISTA VEJA - RIO
Compareci à missa de sétimo dia de uma amiga de escola no fim de setembro.
Como de hábito em tais cerimônias, procurei ver, nas imagens da cruz, a ressurreição, nas de Maria, a mãe onipresente, e ouvi com atenção as palavras do sacerdote; mas o sotaque das preces e a tristeza da liturgia católica dificilmente me enlevam.
Minto, a antropofagia simbólica da Eucaristia é prova do carisma de Cristo. O pão e o vinho comovem; a repetição do gesto que ele, ou Ele, idealizou 2 000 anos atrás.
Tenho vontade de comungar, mas não fiz primeira comunhão. Um receio supersticioso e um respeito às tradições me impedem de entrar na fila. Comunguei na missa do meu pai porque achei que devia, e nunca mais.
Sou batizada, sei as principais rezas, mas não as pratico. Já senti apertos grandes o suficiente para orar sem me dar conta. Nessas horas, percebo que o catolicismo não está assim tão afastado de mim.
A verdadeira celebração pelos sete dias da inexplicável morte de minha colega se deu, como costuma se dar, no discurso dos familiares.
Seu marido narrou o primeiro encontro dos dois, em Paris, durante a final da Copa do Mundo. Jamais vou esquecer. Foi como ouvir a narrativa de Adão e Eva no Paraíso. E ele encerrou com a descrição do primeiro beijo, tão distante em felicidade dos últimos acontecimentos, traçando uma parábola imensa da passagem de sua mulher pela Terra.
Nenhum clérigo faria melhor.
Um conhecido de São Paulo, eruditíssimo, decidiu se matricular em um curso sobre James Joyce em Cambridge. Voltou fascinado com os bretões. Falou-me de John Milton, Newton e Darwin e comparou a influência da Grã-Bretanha à de Roma sobre o Ocidente. Por ter sido das primeiras nações europeias a mandar às favas as amarras do Vaticano, cedo a Inglaterra conquistou a liberdade de pensamento, expandindo o potencial humano.
O sincretismo religioso do Brasil, somado à minha superstição medieval, não me dá coragem de mandar um panteão inteiro de divindades plantar coquinhos. Pelo sim, pelo não, cultivo uma discreta credulidade.
Batizei meu filho na Igreja Ortodoxa de Santa Teresa. O padre Vassili, russo recém-chegado ao Rio com a esposa e a prole, todos saídos de um romance de Dostoievski, se esforçou para realizar o culto em português.
Agradeço à minha sogra, ucraniana, por ter me aproximado da teatralidade dos ortodoxos. Não há lamúria nem autopiedade no ritual, a Bíblia é lida em alto e bom som, clarificando o sentido dos versículos. A noção de cena é tão forte que, quando o padre proclamou que aquela criança morria ali para nascer em Cristo, meu moleque de 7 anos receou que fosse verdade.
Depois de benzer o ungido por mais de hora, o padre deve pegá-lo pela mão e dar três misteriosas voltas atrás do altar. Quando meu menino reapareceu renascido, do mezanino se ouviu a afinadíssima voz da senhora de Vassili entoando um canto gregoriano de cortar os pulsos de tão belo. Não houve como resistir ao impacto da singela encenação.
A Igreja se modernizou, politizou-se, mas sofre com a frieza do rito. Os eclesiásticos parecem feitos de outra matéria que não a humana.
A rotina calorosa dos ortodoxos e a existência de mulheres e crianças na casa do Senhor, já que é permitido ao pároco contrair matrimônio, ajudam a despertar compaixão.
A igrejinha da Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói, é o outro santuário onde me reconheço como cristã no Rio de Janeiro. Talvez pela forte presença feminina da imponente imagem de Santa Bárbara plantada no coração de um quartel militar, talvez pelas histórias mágicas que a fizeram pousar ali, na entrada da Baía de Guanabara.
Enquanto escrevo sobre minhas relações subjetivas com o divino, recebo uma mensagem de Marcelo Freixo pedindo a mobilização da sociedade contra o poder das milícias. O deputado é a bola da vez; só nesta semana, recebeu cinco ameaças de morte por telefone. O fuzilamento da juíza Patrícia Acioli não deixa dúvida quanto às intenções dos algozes.
Uma tragédia anunciada para um homem que luta contra a desigualdade está prestes a acontecer. Que valor existe na justiça divina, se a terrena não funciona?
Deus não merece servir apenas de eterno consolo.
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