sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Orlando na Estação Finlândia


DEMÉTRIO MAGNOLI
O GLOBO


O governo cedeu à máfia chamada Fifa no principal, que é a legislação de licitações, mas simula uma resistência em temas periféricos

A Igreja da Libertação anunciou uma opção preferencial pelos pobres. O PCdoB definiu uma opção preferencial pelo Esporte. Brasil afora, nas esferas federal, estadual e municipal, o partido almeja o controle do ministério e das secretarias do Esporte. Não é o Homem Novo, mente sã em corpo são, que os comunistas fiéis à herança stalino-maoísta pretendem fabricar. A preferência obsessiva obedece a uma estratégia centralizada de financiamento do aparato partidário com dinheiro público. O jogo funciona assim: os gestores públicos do partido repassam recursos a ONGs de fachada, administradas por militantes subordinados ao partido, que pagam pedágio ao partido. Orlando Silva não é uma ilha isolada, mas apenas o ponto focal de um arquipélago assentado sobre uma vasta plataforma submarina.

O Ministério do Esporte funciona como duto de desvios ilegais de dinheiro público para recipientes particulares. As eventuais responsabilidades criminais do ministro só podem ser estabelecidas no curso de um processo, mas suas responsabilidades políticas estão à vista de todos. Por menos, caíram os ministros Antonio Palocci (PT), Wagner Rossi (PMDB), Pedro Novais (PMDB) e Alfredo Nascimento (PR). Qual é o motivo da longa sobrevida de Orlando Silva?

O governo cedeu à máfia chamada Fifa no principal, que é a legislação de licitações, mas simula uma resistência em temas periféricos, como a meia-entrada e as proibições estaduais à venda de cerveja nos estádios. O PCdoB e a camarilha de porta-vozes informais financiados pelo lulismo na internet exibem Orlando Silva como um paladino da luta contra Joseph Blatter e seus asseclas nativos. A patética encenação só ilude os tolos: se Dilma Rousseff quisesse proteger a soberania nacional das forças de ocupação da Fifa bastaria declarar que as leis do país não estão em negociação.

Agnelo Queiroz comandou o Ministério do Esporte, tendo seu correligionário Orlando Silva como secretário-executivo, antes de trocar (ao menos formalmente) o PCdoB pelo PT e se eleger governador do Distrito Federal. Toda a meada do esquema de desvios de recursos, cujas raízes se encontram na gestão de Queiroz, poderia ser desenrolada a partir da demissão do atual ministro. Nos bastidores, circulam ameaças de exposição do governador na trama de seu antigo partido. A extensão das repercussões do escândalo é uma causa circunstancial, secundária, da resiliência de Orlando Silva.

O PT inscreveu-se na paisagem política brasileira como desaguadouro recente da tradição da esquerda. A marca de origem, sua fonte insubstituível de legitimidade, reflete-se na aliança histórica com o PCdoB, o único remanescente significativo da árvore do “socialismo real” no país. Hoje, o PT faz coligações com qualquer partido conservador disposto a intercambiar seu apoio ao projeto de poder petista por cargos no aparato estatal. Contudo, justamente por compartilhar os palácios com Sarney, Barbalho, Calheiros, Collor et caterva, o PT precisa conservar a narrativa mitológica que desempenha funções identitárias cruciais. Os congressos petistas devem mencionar o “socialismo” com ênfase tanto maior quanto mais próximo do grande empresariado estiver o governo. A aliança com o PCdoB deve ser preservada mesmo à custa da imagem de “faxineira da corrupção” construída pela presidente em desgastantes atritos com o PMDB e o PR. As motivações simbólicas são a liga do sólido alicerce que sustenta Orlando Silva.

Uma conferência estadual do PCdoB, no Rio de Janeiro, sexta passada, serviu como palco para a articulação partidária em torno da defesa do ministro. No evento, em meio a cartazes de protesto contra a “mídia golpista”, o presidente do partido Renato Rabelo comunicou que recebera um telefonema no qual Lula transmitiu o grito de guerra: “Vocês têm que resistir, o ministro tem que resistir”. O ex-presidente expressou solidariedade prévia a todos os ministros afastados do governo Dilma sob suspeitas de corrupção, mas em nenhum dos casos anteriores operou como agitador público. No affaire Orlando Silva, ele não age em proveito de uma personalidade ou um partido, mas no interesse de um princípio político.

A corrupção estatal tem a finalidade invariável de produzir fidelidades políticas, soldando um bloco de poder. No Brasil, a corrupção tradicional se realiza na moldura arcaica do patrimonialismo, transferindo dinheiro dos cidadãos para o patrimônio de particulares. O lulo-petismo aprendeu a conviver harmoniosamente com esse padrão de corrupção, mas tende a desprezá-lo. Poucas vozes se ergueram em defesa de Palocci, suspeito de traficar influência para multiplicar seus bens privados. Em compensação, o poder lulo-petista estimula uma nova modalidade de corrupção: a transferência de recursos públicos para partidos e entidades que prometem conduzir o povo ao porto do futuro. Segundo a tese implícita, a administração do Estado deve se subordinar ao primado da política, traduzida como um movimento rumo à realização de uma verdade histórica superior. Obviamente, as engrenagens da corrupção de novo tipo também enriquecem operadores tradicionais, mas tal fenômeno é interpretado como um dano colateral inevitável.

De volta do exílio, em abril de 1917, Lenin desembarcou do vagão de um trem na Estação Finlândia, em Petrogrado, para anunciar a chegada da revolução proletária. Há tempo, o PCdoB renunciou de fato ao socialismo. Entretanto, fatos não importam nos domínios da mitologia política. Numa mensagem à conferência do PCdoB, Orlando Silva mencionou a guerrilha do Araguaia e citou uma carta do poeta stalinista Pablo Neruda ao PC chileno: “Neste momento, me sinto indestrutível, porque contigo, meu partido, não termino em mim mesmo”. O ministro faz parte dos homens da Estação Finlândia. Por isso, o lulo-petismo tentou declará-lo “indestrutível” e sua demissão decorreu da intervenção do STF.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.
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