quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A progressão da crise e o jabuti


Carlos Lessa
Valor Econômico


Há uma sucessão de abalos no sistema financeiro europeu, que facilmente propagar-se-ão pelo mundo "globalizado". A situação da dívida soberana grega se deteriora de forma acelerada. O veto da Eslováquia bloqueou o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira. O Banco Central Europeu (BCE) ainda não se declarou impotente, porém dá sinais óbvios de que não enfrentará o problema. Seu presidente afirmou que a Europa "está vivendo uma crise sistêmica".

O terceiro maior grupo da Bélgica (Dexia) encerrou operações. Detinha €4,8 bilhões em títulos gregos, além de ser dono de €15 bilhões em bônus da Itália e €25 bilhões de dívida de municípios franceses. Cabe a pergunta: a Bélgica dispõe de um "hospital" capaz de restabelecer a "saúde" desse grupo? A França ajudará seus municípios?

Posteriormente, em rápida sucessão, novos sinais pontuam a Europa. Moody"s rebaixou a nota de crédito da Itália. As agências Standard & Poor"s e Fitch rebaixaram três bancos espanhóis, entre os quais o Santander, que passou para o quarto nível de classificação. Outros grandes bancos espanhóis perderam, de forma escalonada, suas classificações. O Santander, no Brasil, assumiu o Banespa em uma privatização desnacionalizante (via leilão, do qual o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal foram proibidos de participar).

Nesse cenário, o Brasil se move com uma lentidão de tartaruga. A China - sempre a China - intervém comprando ações em poder do público dos quatro gigantes bancos estatais do país. A justificativa é interromper a queda das cotações das Bolsas chinesas (Xangai e Hong Kong).

O brasileiro não sabe, mas a classificação de risco do Brasil pela Standard & Poor"s é inferior à Bulgária, México, Rússia, Lituânia e Bahrain. Nossa nota é BBB-, enquanto que os países citados desfrutam da nota BBB. Contudo, o Brasil tem uma carga de dívida adequada em relação ao PIB, bons indicadores de liquidez externa e baixa carga de endividamento público com o exterior. Os maiores bancos no Brasil têm pequena exposição externa. Aparentemente, o Brasil é punido na classificação de risco porque a presidente da República e o ministro da Fazenda pressionaram o Banco Central (BC) brasileiro a reduzir a taxa de juros (que, ainda assim, continua a mais elevada do planeta, às vésperas da reunião do Copom). O Brasil é punido por, soberanamente, ordenar ao BC fazer algo que o povo e o setor privado solicitam há muito tempo. Ainda bem que o BC tomou essa decisão.

É interessante sublinhar a tempestade de críticas oriundas da decisão soberana do governo brasileiro que o Copom acatou. Um conhecido articulista, Alexandre Schwartsman, deplorou a decisão soberana brasileira, afirmando que o BC agiu "como se dispusesse de uma bola de cristal". Para ele, o BC teria tomado a decisão considerando que a crise progredirá. Aparentemente, Schwartsman acha que a crise é matéria de "bola de cristal" e duvida que esteja em progressão.

Visivelmente, a decisão do governo foi contra as expectativas e certezas da maioria dos analistas de bancos e mercado de capitais, que devem ter sido repreendidos pelas diretorias de operações de tesouraria dos bancos brasileiros. Alguns especuladores internacionais devem ter perdido alguma coisa. Obviamente, entre a soberania nacional brasileira e a autonomia operacional(?) do Copom, preferem, entusiasticamente, a segunda. Apesar de o Brasil permanecer com a mais alta taxa de juros real do planeta e deter a terceira colocação mundial em bônus do Tesouro americano, veem, nesse tímido ensaio de soberania, uma ameaça à continuidade do banquete e do festival de ganhos de arbitragem especulativa que o Brasil permite. Lançam mão de todos os procedimentos intimidatórios.

O Brasil deveria se inspirar na China e praticar uma desvalorização do real no estilo do yuan, que se mantém alinhado com o dólar. O Brasil deveria se preparar para reestatizar alguns bancos que se endividaram temerariamente em moeda estrangeira. O Brasil deveria se preparar para adquirir ações da Petrobras nas bolsas do exterior, aproveitando suas oscilações para baixo. O Brasil deveria elevar tarifas aduaneiras dos ramos industriais ameaçados pelas enxurradas de importações e, no mínimo, deplorar que empresas calçadistas brasileiras estejam se deslocando para a Nicarágua, em busca de mão de obra mais barata. Será que o Brasil pretende "maquiar" mão de obra barata para ampliar importações brasileiras? A Embraer foi para a China e não preservou o mercado chinês. O destino brasileiro é ser uma caricatura das filiais americanas na China? Ou nossa caricatura será latino-americana?

Qual é o projeto nacional brasileiro? Retroceder a um simulacro de República Velha (exportadora de café) e se converter numa economia exportadora de alimentos, matérias primas e energia? Brasileiros continuarão com fome no "celeiro do mundo"? Perderemos o mercado siderúrgico do Mercosul, com importações para exportações chinesas apoiadas em minério de ferro brasileiro? Permitiremos que capitais chineses assumam posições estratégicas na hidreletricidade amazônica e no pré-sal? O projeto nacional brasileiro é permanecer na periferia do mundo como fornecedor de produtos primários e correr o risco geopolítico de se converter no Oriente Médio do futuro e num Atlântico Sul com potencial iraquiano de produção de petróleo e vulnerabilidade geopolítica? Espero que a crise coloque em pauta o futuro do Brasil não como matéria de "bola de cristal", mas sim de firmação soberana nacional de um povo que pode - e quer ser - feliz.

Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); escreve mensalmente às quartas-feiras.
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