O ESTADO DE S. PAULO
De como a desordem da sociedade da favela processa a cultura do medo e da dúvida, na qual a derrota da população torna-se óbvia: no conformismo, na resignação, até na subserviência eleitoral
Que guerra é essa? Uma semana inteira de luta armada na região metropolitana do Rio, com dezenas de veículos queimados, dezenas de mortos, feridos e presos e muitas vítimas inocentes, segundo os especialistas em conceitos e os leitores de manuais, não é, no que aos bandidos se refere, terrorismo nem tem conotação ideológica e política. Do lado da polícia e das Forças Armadas, trata-se de combate ao crime comum. Definição difícil de entender.
Para as pessoas comuns, crime ainda é o do assaltante, do ladrão, do agressor, do assassino, do sujeito socialmente destrutivo. Fica muito difícil entender a repressão à criminalidade organizada e territorializada, bem armada e onipresente, como repressão a batedor de carteira. Falta alguma coisa na doutrina e na prática entre nossa antiquada repressão institucionalizada à criminalidade e a obsoleta concepção de combate militar ao inimigo externo.
Qualquer um entende que quando um território cai sob tutela de um poder paralelo, como está acontecendo no Rio, com economia própria, exército próprio, e justiça própria, que resiste a medidas de policiamento e enquadramento por parte do Estado, já não estamos em face de crime comum. O tráfico de drogas, através de seus grupos armados, proclamou a independência política e territorial de favelas do Rio e, portanto, o Brasil já não é o Brasil dos mapas e livros escolares. Quando uma autoridade chega lá, no fundo, chega por concessão do tráfico. As autoridades federais e as do Estado estão interpretando como se fosse de menos o que é de mais.
O regime militar, por muitíssimo menos, combateu os que à ditadura se opunham como inimigos internos a serviço de potências estrangeiras. Mas o tráfico, sim, está a serviço de difusa potência estrangeira, ameaça a segurança nacional, compromete nosso modo de ser e ameaça o futuro do Brasil ao comprometer a saúde e as identidades das novas gerações, roubando-lhes pelo vício a lealdade que deveria ser a base da nação, o sentimento de pertencimento que nos faz pátria e povo. O drogado é reles cidadão do tráfico, um condenado a ser ninguém.
Para a população é muito difícil compreender o uso de tanques de guerra para combater esse inimigo interno e ao mesmo tempo ser tolerante e benevolente com os consumidores de drogas, fonte alimentadora do tráfico e de todos esses poderes antirrepublicanos e antibrasileiros. Sem cortar a veia que nutre com o dinheiro bem ou mal ganho do viciado os poderes crescentes do tráfico, há risco de que a movimentação destes dias não fique nos limites de mera demonstração de força do governo. Se não houver uma política coerente e de conjunto que desvende e desmantele as conexões entre o usuário de drogas e o produtor, o fornecedor e o distribuidor, em poucos dias as ligações criminosas se restabelecerão.
Os bandidos sairão fortalecidos porque terão aprendido as novas táticas dos que lhes oferecem combate, como, aliás, tem acontecido até aqui. Ao longo das últimas décadas aprenderam técnicas de organização corporativa, transformaram a mentalidade delinquente em ideologia política e mística social, adotaram padrões empresariais de gerenciamento de dinheiro e de criação de infraestrutura econômica, logística e militar. Criariam redes de intimidação e de apoio. Criaram outro país. Como, então, não se trata de terrorismo nem de política?
Sem uma política abrangente de combate ao tráfico, continuaremos nessa lenga-lenga de espetaculares demonstrações periódicas de poder pelas quais se tenta manter o tráfico nos limites estritos do comércio de drogas. Desde a década de 1990, o Exército é chamado a ocupar os morros cariocas, quase sempre quando ocorre um evento internacional no Rio ou se tem algum em perspectiva, como agora a Copa e a Olimpíada. Mas nesses casos a intervenção é para garantir a segurança dos visitantes, dos que passam, mas não ficam. Os nativos, a população local, especialmente a dos morros, continuarão sujeitos às balas perdidas da política perdida. Terão que continuar fingindo que está tudo bem, que a guerra não é com eles, saindo para o trabalho sem saber se vão voltar, voltando sem saber se vão sair novamente na manhã seguinte. A desordem da sociedade da favela está criando uma cultura, que é a cultura do medo, da falta de esperança, da falta de certeza, a cultura da dúvida e do duvidoso. Nenhuma sociedade se constitui com base nessas referências precárias. A derrota da população é óbvia, no conformismo, na resignação e até na subserviência política e eleitoral. Isso anestesia mais do que droga.
José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de a Aparição do demônio na fábrica (editora 34)
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