O Globo
Os relatos que começam a surgir de abusos de poder por parte de policiais na ocupação do Complexo do Alemão têm que ser investigados e reparados o mais rapidamente possível pelas autoridades responsáveis pela segurança pública no Rio, para que não se quebre o clima de solidariedade entre a população e as forças da lei, a principal razão do sucesso da operação.
Houve uma mudança fundamental na atuação das forças de segurança nesse episódio, com os limites da lei sendo respeitados e os direitos dos cidadãos, até mesmo dos traficantes, norteando a ação de repressão. Desvios eventuais têm que ser reparados.
No domingo, a Globo News colocou no ar diversos depoimentos de estudiosos que destacaram em uníssono o que fez a diferença desta ação policial das anteriores.
O psicanalista Joel Birman, professor da Uerj e da UFRJ, considera que a população sentiu que a polícia deixou de ser ambígua, o que a motivou a sair da inércia.
“A polícia se firmou como sujeito de um estado de direito. O imaginário das pessoas faz com que elas se sintam protegidas por uma autoridade e saiam do medo paralisante que até então os dominava”, comenta Birman.
O recorde de telefonemas para o Disque-Denúncia demonstra, segundo ele, que, quando os cidadãos passam a acreditar na ação das autoridades, no momento em que fazem a denúncia, acham que estão trabalhando para ajudar a limpar a comunidade de elementos nefastos.
“Foi a maneira decidida de agir que deu à população a sensação de segurança”, diz Birman, ressaltando que não só a polícia não se deixou intimidar pelos traficantes como se apresentou com uma força muito maior, e não negociou para entrar na favela.
O recado dado aos traficantes e à própria população foi: “Nós vamos entrar e prender vocês. Nós estamos do lado do bem e vocês, do lado do mal. Nós estamos do lado da lei e vocês, do lado do crime. O Estado vai recuperar esse território”. Para Joel Birman, a imagem da fuga dos bandidos “foi como se a gente sentisse a reconstituição da sociedade do Rio”.
Uma sociedade é uma associação de pessoas, lembra Birman, e com a operação “surgiu a possibilidade de uma população fragmentada, assustada, cada um tratando de sobreviver no seu canto, de repente reconstituir os laços sociais e participar com solidariedade através do Disque- Denúncia, através das redes sociais, do Twitter”.
Para Joel Birman, o fato de a TV Globo ter transmitido ao vivo os primeiros momentos da ocupação deu maior transparência à operação e evitou que qualquer excesso eventual fosse cometido.
O sociólogo Ignácio Cano, da Uerj, preocupa-se com o reforço da lógica da guerra, e ficou aliviado por não ter havido um banho de sangue.
Ele temeu que tivéssemos um retrocesso com a ação da polícia meramente reativa às ações dos bandidos, deixando de lado o planejamento estratégico que rege a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
“Há centenas de comunidades no Rio de Janeiro ainda dominadas pelo tráfico e pela milícia, e não há sentido em cantarmos vitória”, ressalta.
Para ele, o mais importante é a retomada do território, e, para isso, as forças de segurança terão que continuar no Complexo do Alemão até que se instale uma UPP.
Diante de um comentário meu, Cano ressalvou que não é possível punir as comunidades que estão sob o domínio do tráfico com a falta de obras públicas.
Eu me referia às bandeiras hasteadas no teleférico do Complexo do Alemão que, se por um lado sinalizam uma vitória das forças legais, também relembram que as obras do PAC estavam sendo feitas com a favela dominada pelo tráfico, o que demonstra que havia um acordo com os traficantes.
A própria rota de fuga pelas tubulações subterrâneas e os túneis que os operários teriam sido obrigados a construir mostram que não há possibilidade de fazer acordo com bandidos sem se envolver com algum tipo de desvio.
Francisco Carlos Teixeira, professor de história contemporânea da UFRJ, classifica de “uma vitória” não ter acontecido a grande explosão de violência, o banho de sangue que se temia.
A operação, destaca, mostrou que as forças policiais e militares tiveram uma boa atuação dentro do estado de direito. “Vimos que é possível ser duro, manter a ordem, sem violação dos direitos civis, do direito da população. Também vimos que há eficiência, há competência”.
Ele destaca, no entanto, a importância de o governo federal agir. “Não se trata de colocar à disposição do estado carros blindados e tropas, porque isso é uma exceção. Tem que agir é no cotidiano: a Receita Federal tem que controlar a lavagem de dinheiro, a Polícia Federal tem que tomar para si a missão constante de controle de fronteira, não apenas na crise, e a Polícia Rodoviária Federal não pode deixar chegar cocaína, maconha e armas ao Rio de Janeiro”.
Ele acha que houve nitidamente uma diferenciação na ação, destacando que “infelizmente nos lembramos claramente que as incursões da polícia nas comunidades populares no Rio eram movidas pela vingança e culminava em coisas lamentáveis como Vigário Geral e outras tantas até recentemente”.
Jacqueline Muniz, antropóloga, professora da Ucam e da UFRJ, diz que a diferença desta vez “foi a qualidade da ação do governo. Diante da incerteza, da imprevisibilidade, do temor, responderam com superioridade de método, regularidade”.
Também demonstraram, ressalta, uma capacidade de ação coordenada, integrada, e, portanto, “uma ação de natureza federativa”.
Jacqueline Muniz também acha que foi importante a prestação de contas regular que foi feita à população. “Na normalidade democrática, as forças da lei dependem da cooperação da população. Como fazer busca e rastreamento sem mandado de busca e apreensão? As próprias casas são geminadas, umas se ligam às outras. É preciso fazer isso com a cooperação da população. Quanto menor o nível de resistência da população à polícia, menor é o risco em operações especiais”, destaca.
Ela destacou dois aspectos importantes na operação do fim de semana: o centro de triagem e identificação, para minimizar a possibilidade de erro nas detenções, e a montagem de centros de socorros.
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