O Estado de S.Paulo
"Queima o que adoraste e adora o que queimaste!" A senha papal da conversão dos reis bárbaros ao cristianismo deveria ser usada como epígrafe do informe do VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), convocado para abril. Por baixo de uma espessa camada de linguagem orwelliana, o documento anuncia a substituição do sistema econômico estatal por uma economia mista. Seria um "modelo vietnamita", no eufemismo criativo de um regime que, anos atrás, crismou o "modelo chinês" como restauração do capitalismo e hoje teme a assombração de seus próprios epítetos. No texto de 13.295 palavras, "liberdade" não aparece nenhuma vez. O informe, contudo, gira sem cessar em torno do problema da liberdade.
O plano oficial restaura a liberdade, mas apenas um tipo de liberdade. O capital estrangeiro terá liberdade para operar em Cuba. Os cubanos ganharão a liberdade de empreender e de empregar assalariados. Também poderão, livremente, vender a sua força de trabalho, empregando-se em negócios privados de outros cubanos. Porém os domínios da liberdade não ultrapassarão a esfera econômica. Não serão reconhecidos os direitos dos trabalhadores de constituir sindicatos livres ou declarar greve, pois as liberdades "capitalistas" são intoleráveis na sociedade socialista.
No lugar da senha papal, o texto usa como epígrafes uma definição de "Revolução" e um chamado à "batalha econômica". A primeira é assinada por Fidel Castro Ruz, simplesmente; o segundo, pelo "General de Exército Raúl Castro Ruz". Fidel dispensa títulos: ele é o corpo terreno da "Revolução". Raúl omite o título de presidente da República para utilizar outro, que indica a fonte última de seu poder. As primeiras reformas radicais são a demissão de 500 mil trabalhadores do setor estatal e a supressão da "libreta", cartela de racionamento que assegura uma cesta básica subsidiada à maioria dos cubanos sem acesso à moeda forte (o peso convertible). Não há como fazer isso sem, antes, aterrorizar os cidadãos e erguer a lâmina de uma espada sobre os militantes do "partido dirigente".
A espada já desceu sobre Esteban Morales, um alto quadro do PCC, diretor do Centro de Estudos sobre os EUA na Universidade de Havana, que publicou um artigo de alerta no site da União dos Escritores e Artistas (Uneac). "A contrarrevolução", escreveu, "toma posições em certos níveis do Estado e do governo." Ela é representada pelas autoridades que "se preparam financeiramente para quando a Revolução desabar" - o momento da "transferência de patrimônios do Estado para mãos privadas, como ocorreu na antiga URSS". Ato contínuo, o artigo desapareceu da página da Uneac e seu autor foi expelido do PCC. No sistema totalitário, a crítica "de esquerda" não é menos interditada que a crítica "de direita". Ao sugerir que Castro & Castro comandam uma restauração capitalista, o comunista Morales descobre-se tão carente de liberdade de expressão quanto os dissidentes que contestam o sistema de economia planificada.
Morales talvez venha a se encontrar com os outros dissidentes na prisão ou no exílio. Por ora ainda escreve, mas não mais num órgão oficial. Seu artigo seguinte, um apelo às bases do PCC, denuncia o controle do partido pela cúpula, uma "deformação pela qual se pagou caro na URSS". Não há, porém, "deformação", mas norma. Só os intelectuais hipnotizados pelos dogmas leninistas fogem de uma conhecida evidência histórica: em todos os lugares, quando se instala um regime de partido único, a direção partidária asfixia a expressão das bases e um núcleo dirigente, às vezes composto apenas pelo Líder, sufoca a liberdade do restante da direção. A mais recente comprovação da norma é o informe cubano, um verdadeiro testamento de Fidel Castro.
O Estado castrista repousa sobre um contrato implícito de intercâmbio entre liberdade e segurança social. O Estado fica com a liberdade só para si, pagando-a pela distribuição de bens essenciais subsidiados: empregos, alimentos básicos, serviços de saúde e educação. Dentro e fora de Cuba, o contrato da "ditadura benigna" encontra-se na raiz da justificação ideológica do regime. No Brasil, ele é celebrado na escritura "humanista" de Frei Betto, saudado na prosa precária de Lula, cantado no verso lírico de Chico Buarque. Agora, contudo, Castro & Castro proclamam a decisão de suprimir um dos polos do intercâmbio: o Estado desiste da função de fornecer segurança social, mas reitera seu monopólio sobre a liberdade.
O totalitarismo requer uma presunção de infalibilidade do Partido - isto é, do Líder. Fidel prometeu que o "modelo soviético" conduziria os cubanos à redenção comunista. A quebra do contrato equivale ao reconhecimento da falência da promessa. As implicações lógicas seriam a renúncia à prerrogativa de infalibilidade e a convocação dos cubanos a um debate irrestrito sobre o futuro da nação. Mas, desafiando a lógica, o testamento de Fidel não proclama a liberdade de organização partidária nem convida o país a preparar eleições livres. Ao contrário, reivindica a presunção desmoralizada para emitir um decreto de substituição do "modelo soviético" pelo "modelo vietnamita". Eis por que a palavra "liberdade" não faz parte de seu testamento.
Fidel Castro planeja introduzir a liberdade para os capitalistas. Esteban Morales almeja a liberdade para os militantes do PCC e um sistema econômico planificado sob controle dos trabalhadores. Segundo relata a blogueira Yoani Sánchez, numa praça de Havana um jovem confessou-lhe suas ambições. "Ter meu pedacinho: uma casa, um salário decente, permissão para viajar." A liberdade como privilégio, fragmentada em liberdades especiais, nunca dará uma chance ao "desejo maldito, que poderia valer-lhe o escárnio público", do interlocutor anônimo de Yoani. O testamento de Fidel constitui a prova negativa de que liberdade é um bem indivisível.
SOCIÓLOGO, É DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.
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