Folha de S. Paulo – 26.11.2010
O embaixador do México quis aprender a tocar cavaquinho antes de deixar o Brasil, mas acabou desistindo quando descobriu que não há partitura fiel ao dedilhado dos virtuosos. Cavaquinho se aprende no convívio das rodas de choro.
Na despedida, o embaixador confessou que o Rio de Janeiro, para ele, era como o cavaquinho, maravilhosamente belo na prática e caótico na teoria.
O Rio é a capital universal da informalidade.
Pois um gaúcho da pacata e civilizada Santa Maria, José Mariano Beltrame, aceitou o desafio de chefiar a secretaria de Segurança da ex-Guanabara há dois anos.
Não houve um amigo que não o parabenizasse e, a seguir, comentasse a dor de cabeça que, bar-ba-ri-da-de!, o conterrâneo formado em direito, administração e inteligência estratégica estava prestes a enfrentar.
Cabe à polícia lidar com as contradições da sociedade. No Rio, elas são infinitas.
O jogo do bicho, por exemplo, é uma tradição centenária. Não há ninguém que já não tenha feito sua fezinha. Os anotadores de aposta estão em cada esquina, inclusive na da Secretaria de Segurança, no centro, apesar de ser uma atividade ilegal.
Ninguém acha justo prender o tiozinho da banca, mas, quando se amplia o olhar e se chega aos grandes bicheiros, o jogo já não parece tão inofensivo assim.
Os empresários do jogo do bicho se organizam em feudos fortemente armados que movimentam somas polpudas sem pagar um centavo de imposto, ajudam a corromper a polícia e incluíram os caça-níqueis, ligados às milícias, no cardápio de seus interesses.
Por outro lado, as escolas de samba, patrimônio cultural e turístico do carioca, são financiadas por eles, o que os torna figuras adoradas e folclóricas.
Como deve agir a polícia diante do vespeiro amoroso de pecadores leves e grandes contraventores?
Por que a Mega Sena pode e o bicho não? Se a sociedade deseja sonhar com o coelho e apostar na cobra, por que o bicho é proibido? Talvez porque molhar a mão de um policial saia mais barato do que encarar o fisco. A informalidade gera violência, desordem e dividendos.
Os 20 anos de populismo e assistencialismo eleitoreiro no Rio criaram centenas de zonas abandonadas pelo Estados e ocupadas por poderes paralelos. São décadas ao largo da lei.
Quando José Mariano assumiu o cargo, focou seu plano de ação na questão territorial, a reintegração de posse de áreas esquecidas pelo poder público, tomadas pelas três principais facções criminosas ligadas ao tráfico.
Sua estratégia é das mais antigas: após dominada uma área, duplas de policiais, os Cosme e Damião, ocupam o local em caráter permanente. Conquista-se rua a rua, bairro a bairro, favela a favela.
Na Cidade de Deus, Beltrame se chocou com o lixo e os porcos convivendo com as crianças. Nos postes de luz apagados, fotos e fotos de deputados e vereadores com seus números no TRE.
O secretário é um caso raro de político mais interessado nos problemas concretos da sociedade do que nos lucros eleitorais de suas ações.
Ele se refere à ocupação do Complexo do Alemão como a tomada da Normandia e tem vontade de anunciar o dia e a hora de sua chegada para que os bandidos recuem sem tiros. Ouvindo-o falar, parece até possível.
As recentes ações terroristas precipitaram o avanço sobre a região do entorno da Penha. Centenas de homens de short e sem camisa carregando escopetas foram flagrados fugindo para uma favela aliada. Pode-se batizar o 25 de novembro de 2010 como o dia D do Rio de Janeiro.
A União reserva fatias de sua arrecadação para investir diretamente em educação e saúde, mas a segurança pública não recebe nada do governo federal. Cada Estado depende dos próprios cofres para remunerar seus contingentes. Beltrame defende, entre outras prioridades, que uma fatia do Orçamento da União seja garantida para a segurança dos Estados.
Apesar do sucesso das UPPs, Beltrame sabe que a polícia não resolve as causas da tragédia social nem tem poder de preencher o vazio deixado pelo tráfico.
Cabe, agora, aos outros setores do Estado preencher a lacuna sócio-econômica deixada pelo desmantelamento do poder paralelo.
É preciso entrar com educação, saúde, transporte, cultura, lazer e esporte, é preciso criar perspectiva de futuro para uma população descriminada e mal preparada.
Se as chances de emprego para um rapaz branco, de classe média e que teve acesso à escola já são duvidosas, imagine as de um menino negro e semi-alfabetizado em um sistema de aprovação automática.
Estudos populacionais garantem que cidades compostas de jovens rapazes desocupados enfrentam um nível de testosterona ocioso que facilmente se transforma em agressão, briga, roubo e baderna.
Junte-se a isso a corrupção política, a pobreza e a miséria, está pronto o coquetel molotov que atormenta a Guanabara.
A polícia não vai dar jeito na doença histórica da injustiça e da desigualdade, mas talvez possa fazer alguma diferença com relação à impunidade.
O secretário caminha na fina linha que separa a eficiência do abuso. A lei, muitas vezes, age contra; mas sem a lei, ele reconhece, seria muito pior.
Os advogados são os pombos-correios das vontades dos traficantes nas prisões de segurança máxima. O direito à privacidade não permite a gravação de conversas entre um advogado e seu cliente, mas esse direito propicia o comando de ações terroristas mesmo com o mandante atrás das grades.
No dia em que me encontrei com Beltrame, o Rio estava sofrendo uma onda de arrastões, primeiro grande revide dos chefes do tráfico contra as UPPs. A ordem partiu dos presídios.
Além dessa guerra anunciada, Beltrame lida com crimes de colarinho branco e sonegação de impostos que esbarram, muitas vezes, em deputados de índole duvidosa no Congresso.
E o cobertor curto do gaúcho ainda encara a morosidade, a indulgência da Justiça e a falta de um código de ética.
Após investigar e prender um miliciano vereador, Beltrame assistiu incrédulo à Assembleia livrar da cassação o ilustre político porque ele justificou sua ausência dizendo que estava preso.
Nenhuma cidade do Brasil reúne contravenção e cultura, informalidade e política, armas e drogas, turismo e lazer, violência e natureza, céu e inferno como o Rio.
A racionalidade e a firmeza com que Beltrame tem agido em um setor onde a sociedade já havia entregado os pontos lembra as pequenas forças construtivas da Teoria do Caos. São milagres aleatórios que nadam na direção oposta ao aniquilador ralo cósmico da entropia e criam calor, organização, planetas, estrelas, quasares e a própria vida.
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