JOSÉ SERRA
O Estado de S.Paulo
Parece ter virado rotina. Em época de eleição, nada mais demonizado do que a ideia de privatização de empresas ou serviços públicos. Passadas as eleições, a mesma ideia se torna apreciada pelos mesmos que a satanizaram. Essa é uma especialidade do PT, embora, a meu ver, a citada demonização estivesse longe de explicar os resultados da eleição do ano passado. Mas esse não é nosso assunto de hoje.
Pretendo abordar a questão de outro ângulo, a partir da oportuna reportagem de Renée Pereira, no Estadão, sobre as estradas federais concedidas à gestão privada durante o governo Lula. A matéria ilustra de forma perfeita até que ponto uma política pública pode ser malfeita e se candidatar a estudo de caso em cursos de economia ou administração pública.
Em resumo, foram concedidas sete rodovias federais em outubro de 2007. Ganhou quem ofereceu o menor pedágio e se comprometeu a realizar R$ 5 bilhões em investimentos, num prazo de cinco anos. O que aconteceu desde então?
Os pedágios aumentaram bem acima da inflação, mas o programa de investimentos não foi cumprido. Nos primeiros três anos de concessão, o índice de execução atingiu pouco mais da metade do acordado nos contratos. O governo deixou que isso acontecesse.
Diante das queixas de prefeitos do Paraná a respeito de um trecho de rodovia federal sob concessão, o diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o principal órgão federal que cuida das estradas, foi flagrado pelo Jornal Nacional esbravejando: "Se a empresa não duplicar, tira e põe outra... Qualquer coisa, vamos queimar as praças de pedágio, vamos tocar fogo nas coisas, entendeu?"
É assim: o chefe do Dnit, a quem cabe fiscalizar, fazer cumprir leis e contratos nessa área, cuidar da segurança e da qualidade das rodovias, destempera-se como se não tivesse nenhuma responsabilidade sobre o assunto. Não é maravilhoso?
Na verdade, o Dnit, como a quase totalidade dos órgãos e agências do governo, já foi privatizado há muito tempo, e essa é uma das causas do fracasso rodoviário brasileiro. Falo da privatização viciosa, não da virtuosa: sua diretoria é loteada entre partidos, grupos e subgrupos, que põem a instituição a serviço dos seus interesses político-pecuniários, os quais pressupõem não apenas a falta de planejamento e modelos de concessão malfeitos, mas também lassidão no tratamento dos contratados privados.
Enquanto isso, as rodovias federais batem recordes em matéria de acidentes - em 2010, 15,4% de mortes a mais do que em 2009, ano que já tinha batido o mórbido recorde. Do ponto de vista econômico, o mau estado dessas rodovias provoca um aumento médio dos custos de transporte de quase 30%. Aliás, pesquisa da CNT mostrou que apenas 30% das estradas federais têm pavimentação em bom ou ótimo estado. É o barato que sai caro.
O melhor exemplo de concessões rodoviárias bem feitas tem sido o de São Paulo, onde 75% das estradas são consideradas ótimas ou boas e os acidentes por quilômetro de veículo rodado caem ano após ano. Nessas concessões - amaldiçoadas pelos candidatos petistas na última campanha - o investimento por quilômetro/ano associado ao modelo paulista é cerca de 170% superior ao federal. É o caro que sai barato.
Na verdade, o PT não chega a ter um problema ideológico com as privatizações. Fosse assim, poderia aprender alguma coisa e mudar. A questão é mais séria. Eles têm dificuldades para realizar privatizações de sucesso em razão de seu despreparo em matéria de gestão e da maneira como governam. A essência do seu padrão de administração pública é o patrimonialismo - uso do setor público para atender aos que governam e a seus partidos -, mais o talento ilusionista: o que conta é o anúncio, a publicidade, o mundo virtual e o vale-tudo nas eleições. Planejar e servir ao público, e não servir-se do que é público, não fazem parte da cartilha.
Isso tudo está por trás também do colapso dos aeroportos brasileiros. Quando governador de São Paulo, insisti sempre junto ao presidente Lula na necessidade de conceder a gestão dos Aeroportos de Viracopos e Guarulhos ao setor privado. No fim, apesar do apoio do ministro da Defesa, Nelson Jobim, o governo recusou-se a fazê-lo. Anos foram perdidos, os problemas se agravando. A candidata adversária e seu partido houveram por bem até satanizar a proposta durante a campanha eleitoral.
Passadas as eleições, dá-se uma cambalhota e anuncia-se a concessão desses dois aeroportos e do de Brasília, como se o anúncio em si fosse uma panaceia. Entre outras coisas, enfia-se, não se sabe como vai ser, a Infraero, empresa estatal do setor, como sócia minoritária (49%). A Infraero, como os Correios, foi uma das estatais mais castigadas e estragadas pelo governo Lula, passando a ser a detentora da taça nacional de superfaturamento de obras. Por cima, anuncia-se um prazo impossível para o edital de concorrência: até o fim do ano! Isso numa área complexa e na qual não há nenhuma experiência no Brasil. Note-se que depois do edital vem a concorrência. Depois desta, as obras...
Outra modalidade recente de privatização é a que envolve dinheiro público doado à área privada, criando grandes espaços de influência, quando não de manipulação e arrecadação de recursos. Grandes subsídios ao capital privado para compensar projetos mal elaborados (Belo Monte) ou mesmo alucinados (trem-bala), financiamentos do BNDES a esses e outros projetos, a juros equivalentes à metade das taxas de captação de recursos pelo Tesouro. Custo anual, não aprovado em nenhuma lei orçamentária: R$ 20 bilhões ao ano. (Veja-se a esse respeito meu artigo Um Banco Muito Especial em http://www.joseserra.com.br/archives/1132.)
A transformação de recursos públicos em privados no governo petista é rápida e malfeita, tal como no lema da Cavalaria antiga, estilo retratado num filme antigo, A Carga da Brigada Ligeira. Já as concessões e parcerias com o setor privado são lentas e malfeitas, contrariando metade do lema. O pior dos dois mundos.
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