Pelo modo como Dilma foi escolhida por Lula, quem tem força política não tem cargo; quem tem cargo não tem força política; quem vai mandar? Dilma ou Lula?
A perspectiva de mais quatro anos de governo presidido por alguém que veio da guerrilha e do PDT de Brizola eleva os temores das classes empresariais e das tendências políticas liberais de que tenhamos um significativo fortalecimento do intervencionismo estatal e do autoritarismo.
É um pouco cedo para previsões, tanto mais que o programa da candidata e o esforço de responder ao que o eleitor desejava ouvir não trouxeram muitos elementos para esclarecimentos do que seria um governo tendo Dilma como presidente. Mas podemos refletir com um pouco mais de segurança sobre algo que logo deverá estar à vista e resulta do próprio processo personalista e autoritário da escolha da candidata vitoriosa. A questão básica pode ser resumida na pergunta que sempre está no centro das disputas políticas: quem vai mandar? Dilma ou Lula? Da resposta a essa questão - que normalmente, no presidencialismo, não precisa nem ser formulada - podem resultar complicações institucionais que dificultarão o bom andamento da máquina administrativa federal.
No presidencialismo, quem legitima e legalmente exerce o poder é o escolhido pelo voto segundo certas regras das disputas. Ele - ou ela, no nosso caso - é o número um. Não há dois números um. Mas a eleita não tem força político-eleitoral, quaisquer que sejam suas qualificações administrativas para o exercício do cargo máximo. Na situação criada pelo modo como Dilma foi escolhida e oferecida ao eleitorado, quem tem força política não tem cargo; quem tem cargo não tem força política. Há uma contradição entre o institucional e o político. O que deve prevalecer? O formal ou o real? O legal ou o legítimo? Quem deve ser o chefe? O criador ou a criatura? Ou não haveria chefe?
Uma saída seria a constituição de um grupo seleto e relativamente informal de subcomandantes que funcionaria como o cérebro do novo governo, uma espécie de seu birô político. Mas chefia coletiva só acontece quando da morte do grande chefe, quando ainda não está consolidada a relação de forças no grupo interno do poder e o sucessor não foi indicado com antecedência. A União Soviética depois da morte de Stalin ilustra essa situação. Uma direção coletiva foi formada e exaltada depois da morte do Guia Genial dos Povos. Durou pouco tempo. Logo o poder supremo voltou para as mãos de um só. Políticos não gostam de dividir poder. Em política, nas ditaduras ou nas democracias, dentro de cada partido ou das facções partidárias, o n.º 1 é um só. Em nossa história recente, houve vices eleitos nas costas do titular que assumiram a Presidência sem votos. Pensamos em José Sarney e Itamar Franco. A letra dos ordenamentos jurídicos que dão o controle do Diário Oficial, quer dizer, da distribuição dos benefícios, acabou por impor-se.
A situação originária desta eleição de 2010 é diferente. Quando votaram em Dilma, os eleitores sabiam que não estariam escolhendo Dilma, mas Lula. A primeira presidente do Brasil estaria lá para expressar a vontade de um homem. Sua candidatura era uma oportunidade que Lula oferecia aos eleitores de lhe darem um terceiro mandato. Os eleitores atenderam o desejo do Lula. Mas o político a quem a maioria dos eleitores gostaria de ver permanecer no Palácio do Planalto estará fora do governo. Poderia ser nomeado para algum ministério, caso quisesse. Mas Lula não pode voltar para uma posição subordinada a Dilma. E ela, ocupando a Presidência, não pode ficar subordinada ao ex-chefe. Talvez, com a ajuda do novo governo, possam acontecer pressões populistas para encontrar alguma fórmula jurídica que permitiria a Lula voltar mais cedo ao poder. A história latino-americana de países que admiram a "democracia substantiva" mostra vários exemplos de lideranças populistas que gostam de arengar para as massas de palanques presidenciais e que gostam de continuar.
Ocorre que, mantido o quadro constitucional, Dilma passará não apenas a habitar o Palácio da Alvorada como a assinar todos os atos importantes de governo. Por mais que adequadamente assessorada, no final caberá a ela decidir. Se deixar a última palavra para Lula, a ex-chefe da Casa Civil estará desmoralizada e terá dificuldade para impor sua autoridade. Se apenas escutar os conselhos do ex-chefe e a eles fizer ouvidos moucos, estará contrariando o político mais popular do Brasil.
Essas são, obviamente, observações especulativas sobre desenvolvimentos possíveis. Mas, se exemplos do passado têm alguma importância, não parece certo que Dilma se encolherá para um segundo plano, limitando-se a cumprir as ordens de Lula. Geralmente, com o correr do tempo, as criaturas revoltam-se contra o criador. A história brasileira mostra muitos casos de padrinhos políticos que, impedidos legalmente de disputar um novo mandato, conseguiram eleger sucessores quase totalmente desconhecidos do eleitorado. Ademar de Barros, então governador de São Paulo, em 1950, lançou o professor da Escola Politécnica da USP Lucas Nogueira Garcez para sucedê-lo. Contudo, uma vez no governo, Garcez afastou-se de Ademar e ajudou a eleger Jânio Quadros. Em 1990, Orestes Quércia lançou seu ex-secretário de Segurança Fleury Filho ao governo do Estado. Fleury foi eleito, mas logo rompeu com Quércia e foi para o PTB; Celso Pitta, um desconhecido, eleito prefeito de São Paulo em 1996 com apoio de Paulo Maluf, logo rompeu com seu tutor.
Não é que os afilhados tenham vocação para a ingratidão e para traição. Acontece que, na área das relações políticas envolvendo personalidades, a questão do comando é essencial. Os políticos amam o poder tanto quanto gostam de ocultar esse amor. De outro modo, não tolerariam as chateações que acompanham o desmedido esforço para chegar lá. Resultados eleitorais afetam não apenas a distribuição do poder entre os partidos, mas também o rumo da organização partidária, da distribuição do poder e, consequentemente, da partilha interna de benefícios e vantagens entre as várias facções. Normalmente, os partidos conseguem acomodar os interesses das facções e grupos. Se não estariam perdidos na competição com os adversários. Alguma acomodação entre as muitas tendências internas também deverá ocorrer no PT. E, aqui, uma dificuldade maior será o equilíbrio (ou desequilíbrio) decorrente da separação entre a influência política de Lula e a autoridade presidencial de Dilma cuja dignidade do cargo necessita manter para a salvação da República.
A perspectiva de mais quatro anos de governo presidido por alguém que veio da guerrilha e do PDT de Brizola eleva os temores das classes empresariais e das tendências políticas liberais de que tenhamos um significativo fortalecimento do intervencionismo estatal e do autoritarismo.
É um pouco cedo para previsões, tanto mais que o programa da candidata e o esforço de responder ao que o eleitor desejava ouvir não trouxeram muitos elementos para esclarecimentos do que seria um governo tendo Dilma como presidente. Mas podemos refletir com um pouco mais de segurança sobre algo que logo deverá estar à vista e resulta do próprio processo personalista e autoritário da escolha da candidata vitoriosa. A questão básica pode ser resumida na pergunta que sempre está no centro das disputas políticas: quem vai mandar? Dilma ou Lula? Da resposta a essa questão - que normalmente, no presidencialismo, não precisa nem ser formulada - podem resultar complicações institucionais que dificultarão o bom andamento da máquina administrativa federal.
No presidencialismo, quem legitima e legalmente exerce o poder é o escolhido pelo voto segundo certas regras das disputas. Ele - ou ela, no nosso caso - é o número um. Não há dois números um. Mas a eleita não tem força político-eleitoral, quaisquer que sejam suas qualificações administrativas para o exercício do cargo máximo. Na situação criada pelo modo como Dilma foi escolhida e oferecida ao eleitorado, quem tem força política não tem cargo; quem tem cargo não tem força política. Há uma contradição entre o institucional e o político. O que deve prevalecer? O formal ou o real? O legal ou o legítimo? Quem deve ser o chefe? O criador ou a criatura? Ou não haveria chefe?
Uma saída seria a constituição de um grupo seleto e relativamente informal de subcomandantes que funcionaria como o cérebro do novo governo, uma espécie de seu birô político. Mas chefia coletiva só acontece quando da morte do grande chefe, quando ainda não está consolidada a relação de forças no grupo interno do poder e o sucessor não foi indicado com antecedência. A União Soviética depois da morte de Stalin ilustra essa situação. Uma direção coletiva foi formada e exaltada depois da morte do Guia Genial dos Povos. Durou pouco tempo. Logo o poder supremo voltou para as mãos de um só. Políticos não gostam de dividir poder. Em política, nas ditaduras ou nas democracias, dentro de cada partido ou das facções partidárias, o n.º 1 é um só. Em nossa história recente, houve vices eleitos nas costas do titular que assumiram a Presidência sem votos. Pensamos em José Sarney e Itamar Franco. A letra dos ordenamentos jurídicos que dão o controle do Diário Oficial, quer dizer, da distribuição dos benefícios, acabou por impor-se.
A situação originária desta eleição de 2010 é diferente. Quando votaram em Dilma, os eleitores sabiam que não estariam escolhendo Dilma, mas Lula. A primeira presidente do Brasil estaria lá para expressar a vontade de um homem. Sua candidatura era uma oportunidade que Lula oferecia aos eleitores de lhe darem um terceiro mandato. Os eleitores atenderam o desejo do Lula. Mas o político a quem a maioria dos eleitores gostaria de ver permanecer no Palácio do Planalto estará fora do governo. Poderia ser nomeado para algum ministério, caso quisesse. Mas Lula não pode voltar para uma posição subordinada a Dilma. E ela, ocupando a Presidência, não pode ficar subordinada ao ex-chefe. Talvez, com a ajuda do novo governo, possam acontecer pressões populistas para encontrar alguma fórmula jurídica que permitiria a Lula voltar mais cedo ao poder. A história latino-americana de países que admiram a "democracia substantiva" mostra vários exemplos de lideranças populistas que gostam de arengar para as massas de palanques presidenciais e que gostam de continuar.
Ocorre que, mantido o quadro constitucional, Dilma passará não apenas a habitar o Palácio da Alvorada como a assinar todos os atos importantes de governo. Por mais que adequadamente assessorada, no final caberá a ela decidir. Se deixar a última palavra para Lula, a ex-chefe da Casa Civil estará desmoralizada e terá dificuldade para impor sua autoridade. Se apenas escutar os conselhos do ex-chefe e a eles fizer ouvidos moucos, estará contrariando o político mais popular do Brasil.
Essas são, obviamente, observações especulativas sobre desenvolvimentos possíveis. Mas, se exemplos do passado têm alguma importância, não parece certo que Dilma se encolherá para um segundo plano, limitando-se a cumprir as ordens de Lula. Geralmente, com o correr do tempo, as criaturas revoltam-se contra o criador. A história brasileira mostra muitos casos de padrinhos políticos que, impedidos legalmente de disputar um novo mandato, conseguiram eleger sucessores quase totalmente desconhecidos do eleitorado. Ademar de Barros, então governador de São Paulo, em 1950, lançou o professor da Escola Politécnica da USP Lucas Nogueira Garcez para sucedê-lo. Contudo, uma vez no governo, Garcez afastou-se de Ademar e ajudou a eleger Jânio Quadros. Em 1990, Orestes Quércia lançou seu ex-secretário de Segurança Fleury Filho ao governo do Estado. Fleury foi eleito, mas logo rompeu com Quércia e foi para o PTB; Celso Pitta, um desconhecido, eleito prefeito de São Paulo em 1996 com apoio de Paulo Maluf, logo rompeu com seu tutor.
Não é que os afilhados tenham vocação para a ingratidão e para traição. Acontece que, na área das relações políticas envolvendo personalidades, a questão do comando é essencial. Os políticos amam o poder tanto quanto gostam de ocultar esse amor. De outro modo, não tolerariam as chateações que acompanham o desmedido esforço para chegar lá. Resultados eleitorais afetam não apenas a distribuição do poder entre os partidos, mas também o rumo da organização partidária, da distribuição do poder e, consequentemente, da partilha interna de benefícios e vantagens entre as várias facções. Normalmente, os partidos conseguem acomodar os interesses das facções e grupos. Se não estariam perdidos na competição com os adversários. Alguma acomodação entre as muitas tendências internas também deverá ocorrer no PT. E, aqui, uma dificuldade maior será o equilíbrio (ou desequilíbrio) decorrente da separação entre a influência política de Lula e a autoridade presidencial de Dilma cuja dignidade do cargo necessita manter para a salvação da República.
Professor titular aposentado dos departamentos de Ciência Política da USP e da UNICAMP. membro da Academia Brasileira de Ciência.
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