domingo, 14 de novembro de 2010

O país que o brasileiro quer ter



O país que o brasileiro quer ter
Celso Masson, Rodrigo Turrer e Humberto Maia Junior, com Leopoldo Mateus (Rio de Janeiro), Marco Bahe (Recife) e Stela Masson
Época - 03/11/2010

As prioridades e expectativas do eleitor segundo seus valores pessoais, sua visão dos problemas que afetam o Brasil de hoje e seu modelo ideal de nação

Quando se olha no espelho, o brasileiro só vê bondade: honesto, ele valoriza a família e as amizades; tem esperança e paciência; é alegre e justo. Quando olha para o lado, enxerga um país tomado por corrupção, pobreza, violência, burocracia e outros males. Entre um extremo e outro, o brasileiro espera o dia em que esta nação imperfeita seja tomada pela paz e pela justiça social, onde haja respeito às pessoas e boas condições de vida para todos. Esse é o quadro que emerge da pesquisa Valores Brasil 2010, feita pela Marcondes Consultoria, aplicada pelo Datafolha e publicada com exclusividade por ÉPOCA. O estudo mapeou as expectativas do brasileiro em relação ao próximo governo a partir de 2.544 entrevistas com eleitores de 160 cidades de todos os Estados do país. Uma lista de 70 palavras que resumem valores e comportamentos foi apresentada aos entrevistados. Entraram termos abrangentes como responsabilidade, respeito, corrupção, iniciativa, justiça e ética. Depois de mostradas as palavras, os pesquisadores formularam três perguntas:

1. Quais destes valores são os mais representativos de quem você é?

2. Quais destes valores são os mais representativos do Brasil hoje?

3. Quais destes valores são os mais representativos de como você gostaria que o Brasil fosse no futuro?

Os entrevistados deveriam associar dez termos a cada item. As respostas foram divididas em sete estágios, que, gradualmente, vão do básico “instinto de sobrevivência” ao altruísta “servir à humanidade” (leia o quadro ao lado) . O resultado mostra que o brasileiro enxerga no país problemas sérios, de um nível primário, das necessidades básicas. “Ele percebe que há pobreza, violência e corrupção”, afirma Caio Barros Brisolla, coordenador da pesquisa. “Mas não vê essa imagem de corrupto e violento em si mesmo.”

Corrupção é a palavra que mais vezes aparece nas respostas que definem o Brasil atual. Para descrever a si mesmo, o brasileiro escolheu, pela ordem: amizade, família, honestidade, respeito e humildade. Entre os valores pessoais menos citados estão o envolvimento comunitário, a resolução de conflitos, a diversidade, a inclusão social e aceitação de riscos. “Vive-se no Brasil uma situação curiosa”, diz o economista Eduardo Gianetti da Fonseca, autor de Vícios privados, benefícios públicos? e As partes & o todo. “Cada um se imagina diferente do todo a que pertence. Se você perguntar para as pessoas ‘Você é racista?’, 98% dirão que não. Se perguntar para a mesma amostra se existe racismo no Brasil, 90% dirão que sim.” Da mesma forma, o brasileiro afirma ser honesto enquanto descreve a sociedade em que vive como desonesta. Essa mentalidade talvez ajude a explicar por que as pessoas apontam os políticos como os grandes corruptos do país – sem enxergar os pequenos atos de corrupção que cometem no dia a dia, como comprar um DVD pirata ou tentar livrar-se de uma multa de trânsito oferecendo propina.

Mais que um traço de desonestidade, o hábito de tirar proveito de um sistema em que práticas corruptas estão disseminadas apontaria para um comportamento acima de tudo individualista. “Somos uma sociedade que deseja produzir valores relativos ao bem comum. Mas, pelas nossas carências, carregamos aqueles vinculados ao interesse próprio”, diz o cientista político Marcus Figueiredo, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Nossa história fez com que gerações aprendessem que ‘ou você se vira ou se dá mal’.”

O individualismo exacerbado é uma característica histórica do brasileiro. Segundo Gianetti, ele nos acompanha desde o início da nação. “Os portugueses que vinham para cá não tinham vínculos com ninguém, nem mesmo com a terra. Chegavam sem família, com um modelo baseado em trabalho escravo.” Essa cultura individualista teria duas consequências diretas. A primeira é o descompromisso em organizar uma sociedade. Isso se revela na enorme dificuldade que existe no Brasil de formar uma associação, de organizar interesses comuns. “A própria estrutura partidária brasileira deriva disso. Os partidos são arranjos circunstanciais de projetos pessoais”, diz Gianetti.

A segunda consequência é que o brasileiro vê no Estado o grande provedor. Pelo resultado da pesquisa, há uma esperança generalizada de que o governo faça tudo. De preferência, com ênfase naquilo que possa trazer algum benefício direto para o eleitor, mesmo que não tenha votado em quem se elegeu. O brasileiro, conforme os dados da pesquisa, deposita na mão do outro a responsabilidade pela solução de seus problemas. A culpa pelo que vai mal e a obrigação para que tudo fique bem recaem nos ombros dos congressistas, dos prefeitos, dos governadores e do presidente. Exemplo disso são os baixos índices de respostas para expressões como “ter o próprio negócio”, “inovação” e “criatividade”.

Essa posição não muda nem mesmo conforme aumentam a renda e a escolaridade – derrubando a tese de que, quando alguém atinge a realização pessoal e satisfaz suas necessidades básicas, pode pensar no bem comum. Em países como a Dinamarca e a Suécia, onde o Estado garante bem mais que o essencial para todos os cidadãos, é assim. Mas não nos Estados Unidos. O país mais rico do mundo é dominado pelo individualismo e pela crença de que, com empreendedorismo, qualquer um consegue enriquecer. Por não ter essa perspectiva, o brasileiro faz com que a eleição presidencial cresça em importância – porque é do governo eleito que virá a possibilidade de consertar o que é preciso. “O brasileiro acha que não é com ele, que é papel do governo fazer as mudanças. Mas o governo não é capaz disso. A sociedade, sim”, diz Alberto Carlos Almeida, autor de A cabeça do brasileiro e A cabeça do eleitor.

O empresário gaúcho Julhiano Bortoncello, de 33 anos, acredita que o governo “é a cara do povo que o elege”, mas afirma que os cidadãos e o Estado têm papéis diferentes. Para ele, o Estado brasileiro tem deixado de cumprir seu papel ao obrigar que o cidadão pague do bolso aquilo que o governo deveria fazer com os impostos que arrecada. “O que há de mais atrasado no Brasil é a educação”, diz Bortoncello. “A saúde e a segurança também são áreas pelas quais pagamos em duplicidade, já que o retorno do investimento público não é proporcional a nossas expectativas.”
O brasileiro deposita na mão do outro a responsabilidade pela solução de seus problemas

Diretor administrativo de uma grande transportadora criada por seu pai em Farroupilha, no Rio Grande do Sul, ele lamenta que o governo não tenha dado à infraestrutura a atenção adequada para acompanhar o crescimento da economia. “Com os negócios aquecidos e mais gente comprando, a frota de veículos para o transporte de carga aumenta.” Para o negócio de sua família, o cenário é excelente. “A obrigação do governo é diferente da que cabe às empresas. Muitas estradas continuam defasadas e inseguras.”

A exemplo de Bortoncello, que pertence à segunda geração de uma família empreendedora, com um negócio gerido a partir de um pai e seus dois filhos, muitos brasileiros veem no apoio do núcleo familiar a principal oportunidade de prosperar. Família é o segundo valor pessoal mais citado na pesquisa da Marcondes Consultoria, atrás apenas de amizade. O historiador americano Thomas Skidmore, um dos primeiros estrangeiros a estudar detalhadamente o Brasil, afirma que desde o Brasil Colônia a elite apelava aos laços familiares para conseguir favores do Estado. Vem das cortes europeias a ideia de que para se dar bem na vida era preciso recorrer a um círculo de relacionamentos. “Os brasileiros dependiam de instituições como a família, a rede de amigos e o apadrinhamento”, escreveu Skidmore no livro Uma história do Brasil.

“A família ainda é o principal pilar da sociedade brasileira”, afirma o psicólogo social Bernardo Jablonski, professor da PUC no Rio de Janeiro. “Em nome da família esquece-se o resto. Porque a família é um dos poucos valores sociais que ainda temos, o único lugar onde ainda se cultiva o respeito, o amor.” Para o antropólogo Roberto DaMatta, o brasileiro dá importância exagerada ao núcleo familiar. “Aprendemos com a família que roupa suja se lava em casa. Ou seja: a sinceridade só é cobrada no nível familiar.” A pesquisa da Marcondes aponta na mesma direção. Ela mostra que o brasileiro gosta de estar em eventos e reuniões sociais, mas não se sente à vontade em compartilhar assuntos íntimos com os outros nem confia facilmente nas pessoas.

“O brasileiro inclui o outro e gosta de ser incluído”, diz um dos trechos do relatório da Marcondes Consultoria. “Mas não se abre com o outro.” Por isso a amizade não se traduz em trabalho em equipe, em projeto conjunto. A explicação para isso, segundo Alberto Almeida, estaria no medo de ser passado para trás. “Por isso, as associações são em torno da família e dos amigos. Saiu desse círculo, não confia mais.”

“É tamanha essa ligação com a família que nem a escola consegue dar conta”, diz DaMatta. “A escola não pode ser um prolongamento da família, mas é. A professora e o professor são as ‘tias’ e os ‘tios’. Como você vai ralhar com seu sobrinho?” Para DaMatta, esse é o tipo de experiência que o brasileiro tem com o espaço público: toma-o como seu. Como sair dessa situação? “Investindo de forma violenta no sistema educacional, na forma de ensinar. Porque não existe um sistema educacional razoável, que insira as regras mínimas de civismo para as pessoas.”

Filha de uma costureira e de um auxiliar de serviços gerais, Juliet Gomes, de 24 anos, deixou Carmo do Cajuru, no interior de Minas Gerais, para estudar no Rio de Janeiro, em 2006. Ela buscava um futuro melhor. Como não tinha condições de pagar uma faculdade, prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e foi incluída no ProUni, com bolsa total. Formou-se em enfermagem, em agosto, na Universidade Castelo Branco. No dia 6, começará a pós-graduação em saúde do trabalhador. “Tenho vontade de ajudar a construir o novo Brasil”, afirma Juliet. Quando pensa nos investimentos necessários para a melhoria da qualidade de vida do brasileiro, ela destaca três pilares: saúde, educação e emprego. Mas, se tivesse de escolher apenas uma prioridade, não pestanejaria. “Educação”, diz. “Ela tira as pessoas de situações de conflito, dá oportunidade e melhor perspectiva de vida. Sou um exemplo disso.” Sua definição de um país perfeito inclui “menos desigualdade, mais oportunidade, educação de excelência e saúde de qualidade para todos”. A visão de futuro do Brasil expressa nas palavras de Juliet é praticamente a mesma da pesquisa Valores Brasil 2010. Entre os itens que descrevem a “cultura desejada” pelos brasileiros, a redução da pobreza ficou em terceiro lugar. Oportunidade de emprego, em sexto. Cuidados com a saúde, em sétimo.

“Num país em que o vice-presidente e a candidata à Presidência receberam diagnósticos de câncer, é justo esperar que o futuro governo priorize investimentos para modernizar os tratamentos dessa natureza”, diz o oncologista Rogério Agenor Araújo, vice-presidente do grupo Luta pela Vida, ONG criada em Uberlândia, Minas Gerais, para construir e manter o Hospital de Câncer, que atende pacientes de mais de 60 cidades do Triângulo Mineiro, de Goiás e de Mato Grosso do Sul. Desde que terminou sua residência médica em Belo Horizonte e ingressou no setor de oncologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal (UFU), há quase 25 anos, Araújo participa de um grupo de médicos, familiares de pacientes e voluntários, decididos a diminuir a distância entre Uberlândia e os melhores centros de tratamento de câncer do país.

Araújo é uma exceção ao quadro mostrado pela pesquisa, de esperar que o Estado resolva seus problemas individuais. Ele foi capaz de organizar a sociedade em torno de uma causa. “O SUS está algumas décadas atrasado em relação ao que há de novo em termos de medicação e equipamentos para tratar o câncer”, afirma. No hospital que a ONG Luta pela Vida construiu e mantém em Uberlândia, os mais de R$ 14 milhões arrecadados por doações da comunidade foram investidos integralmente em construção, compra de equipamentos e medicamentos. Sessenta dos atuais 160 funcionários do hospital são mantidos pelo grupo. “O próximo governo deverá valorizar mais as ONGs sérias”, afirma.

O modelo de gestão adotado pelas organizações não governamentais comprometidas com orçamentos austeros costuma evitar uma das características mais nocivas no setor público, que é o desperdício de recursos. O item aparece entre os dez mais votados na pesquisa Valor Brasil 2010, na categoria “valores da cultura atual”. Para os brasileiros, jogar dinheiro público fora é um problema grave, que muitas vezes se dá de forma quase imperceptível. “Um presidente não deve sair de Brasília para inaugurar obras que ele, como servidor público, é obrigado a fazer”, diz Araújo.

Assim como o oncologista de Uberlândia, o comerciante pernambucano Leonardo Lamartine, de 40 anos, afirma que é preciso melhorar nosso sistema de saúde pública. “É uma vergonha”, diz. Lamartine já morou fora do Brasil. Foi garçom e lavador de pratos em Londres e hoje dirige uma rede de fast-food com 68 franquias em 14 Estados brasileiros e uma unidade aberta, em julho último, nos Estados Unidos. “A crise econômica de 2008 trouxe muitas oportunidades”, afirma. “As pessoas fugiram das aplicações financeiras e investiram em atividades produtivas. O setor de franquias, como um todo, cresceu muito.” Entre suas expectativas para o país nos próximos anos está a reforma tributária, “para desonerar o setor produtivo, e investir mais na capacitação da mão de obra”. Como cidadão, o empresário revela preocupações comuns a todos os brasileiros. “A violência tem impacto na vida das pessoas e na economia. Uma sociedade com medo sai menos, diverte-se menos, consome menos. É um ciclo negativo que só piora tudo.”

Quando imagina o Brasil do futuro, a estudante Alessandra Gonçalves de Castro, de 24 anos, parece seguir a lista dos itens que ficaram em primeiro lugar na pesquisa da Marcondes Consultoria. “Eu gostaria que o próximo presidente acabasse com o desemprego, erradicasse a pobreza, desse um fim à corrupção”, diz. A pobreza é o segundo termo mais associado aos valores da cultura atual. Desemprego, o quarto. Corrupção, o primeiro. Ex-vendedora e projetista de uma loja de móveis, Alessandra está desempregada. “Todo mundo sabe o que precisa ser feito para termos um país melhor, mas ninguém realmente faz. As propostas são sempre maravilhosas, mas ninguém as realiza.” A pesquisa que ÉPOCA publica nestas páginas mostra que esse “ninguém” da queixa de Alessandra não se refere apenas aos políticos.

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