Roberto da Matta - O Estado de S.Paulo
São 13 horas do dia 23 de outubro e eu estou no aeroporto de O"Hare, em Chicago. Eu sou um dos 13 milhões e duzentos e trinta mil passageiros que aqui transitaram este mês. Ando, como e compro jornais neste ponto de encontro de objetos voadores conhecidos, os quais carregam e descarregam tripulantes e passageiros. Aliás, o meu filho mais velho muitas vezes aterrissou nessas enormes pistas e voamos muitas vezes com ele para o Brasil. Esse Brasil que tem hoje (são 21 horas do dia 31 de outubro e estou no meu escritório em casa, em dois espaços e tempos simultâneos) essas coisas que só o espírito humano e a literatura permitem. Meu filho morreu com a Varig, mas o aeroporto e o governo Lula continuam, já que acabo de saber do resultado da eleição.
Minhas saudações à nova e primeira mulher a ser eleita presidente do Brasil. Meus votos de que realmente venha a cuidar do povo brasileiro, sobretudo dos mais pobres.
No momento, em O"Hare, eu estou usando o centro de computação e estou me lembrando do filho comandante que perdi graças ao governo que termina, pois em todos esses locais de trânsito aéreo, sua bela, alta e forte figura surge de dentro do meu coração, tornando-o mais forte e mais valente para lutar contra as empulhações do mundo e da vida. Para combater o desânimo, a falsidade e as mentiras do velho populismo brasileiro que vimos tantas vezes reiteradas neste processo eleitoral por todos os candidatos. Pois nenhum falou de dificuldades, mas - como santos ou virgens - apenas fez promessas. Mas eis que o Comandante aparece. Vejo-o uniformizado ao meu lado, incentivando-me a falar o que penso deste Brasil que todos nós temos o dever de mudar. Ei-lo vivo e morto do caixão negro, obrigando-me ao duro diálogo no qual um lado meu se faz de outro. Ei-lo também instigando a minha revolta contra esses populistas populares que se imaginam imortais porque têm um cordão de puxa-sacos.
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O fato é que eu estava destinado a aeroportos. Estava fadado a ter essa consciência de ser sempre um passageiro que, transitório, acidental e anônimo. Eis o paradoxo. Eu, esse ser invisível pronto a ser ferozmente identificado e inapelavelmente esquecido, devo passar todo o dia em O"Hare de onde sigo para Miami e depois para a minha querida Niterói - esse nome impossível de ser pronunciado em inglês. Quando eles têm a coagem de tentar, sai algo como: em Nai-tí-roaí! Imagine...
Estou ao lado de milhares de outros humanos. Todos sem rosto, mas todos com alma e coração. Todos passantes neste ponto de chegada e saída que, como um cemitério vivo, recebe e despacha para a terra dos esquecidos seus cidadãos embarcados em naves voadoras, não em caixões que se movem pelas mãos dos parentes e amigos.
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Tomo um café e devoro um bolo. Ao meu lado, senta-se um jovem do Texas que é negociante. Vende e compra adubos e, como eu, vive de transformar bosta em dinheiro. Só que eu transmuto tudo em parábolas ou porcarias (como muitos leitores já me disseram), ao passo que ele - como os políticos - vende merda por esterco. E assim a vida segue com os passageiros passando, com alguns esverdeando, e outros dormindo, outros mais roubando ou enganando e, como falava Manuel Bandeira: com os cavalinhos correndo; e nós cavalões comendo... O sol tão claro lá fora; e em minhalma - anoitecendo!
O fato é que, no mundo, todo mundo passa. E quanto mais se quer ficar, mais rapidamente se vai. Como um relâmpago no céu das tempestades de verão ou o arroto num jantar elegante. Você, leitor, escolhe.
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Uns vão depressa. Outros muito lentamente. E as duas situações são duras de viver e acompanhar com emoção e amor. Num caso, é como um barco que explode; noutro, é como um navio que vai partindo de uma ilha para chegar Deus sabe aonde. Talvez do tal além postulado pela incrível resistência humana ao finito, porque o nosso imaginário não conhece fim, nossas almas não têm fundo. Pelo nosso amor que jamais se satisfaz. Camus dizia que há mais compaixão no condenado que sabe quando vai morrer do que em cada um de nós, meros passageiros que não sabemos quando vamos embarcar.
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Agora vale a pena esperar para ver se vai surgir algum rosto novo no velho cordão dos sicofantas nacionais. A eles eu recomendo discreta contenção, senão o nariz fica um tanto amarronzado.
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