XICO GRAZIANO
O ESTADÃO
Hoje se comemora o Dia Mundial dos Animais. A data reverencia São Francisco de Assis, falecido em 4 de outubro de 1226. Pregador errante, tratava os bichos como gente, chamando-os a todos de irmãos. Origens do ecologismo.
Nascido na Úmbria (Itália), o santo padroeiro dos animais viveu na época das Cruzadas, escolha beligerante que a Igreja Católica promoveu para tentar dominar o mundo. Apenas pequenos burgos existiam quando o filho do rico comerciante se despojou da riqueza para ajudar a pobreza, tingindo sua pregação com as cores da natureza. Atitude estranha naquele tempo.
Somente séculos mais tarde, ao final do período medieval, a urbanização começava a criar um modo de vida e, consequentemente, uma cultura própria, distanciando as pessoas citadinas, ainda que relativamente, do mundo natural. E somente agora, com a metropolização dos espaços humanos, aí, sim, tal separação acabou quase completa. Vida artificializada.
Faz bem à sociedade atual refletir sobre a relação entre o homem e seu meio originário. Civilização, no passado, era sinônimo de "conquista" sobre a natureza. E nessa história a domesticação dos animais ocupa destaque. Utilizados na tração, no alimento, no vestuário, nas guerras ou na estima familiar, os animais amansados progressivamente se diferenciaram dos bichos selvagens.
Num extraordinário livro, intitulado O Homem e o Mundo Natural (1983), o inglês Keith Thomas mostra como evoluíram, contraditoriamente, o usufruto da natureza e o valor sentimental oferecido aos animais, selvagens ou domésticos. Ele mostra que só a erosão do antropocentrismo antigo, no final do século 17, permitiu à força dominadora dos humanos ceder espaço à simpatia pelo mundo animal.
Predominava no início o aspecto religioso. O homem, ser racional, único portador de alma, capaz de amar o Superior, recebeu das mãos divinas o desígnio de explorar as criaturas para satisfazer sua vontade. Em nome de Deus, e para o bem das pessoas, permitia-se caçar, abater ou aprisionar os animais. Pecado apenas era a crueldade, uma blasfêmia contra a Criação.
Ao ampliar os limites do mundo, porém, o conhecimento científico promove uma revolução no moderno pensamento ocidental. Astrônomos descobrem novos planetas, zoólogos enxergam a vida microbiana, botânicos classificam plantas sem parar, geólogos medem a idade das rochas. A visão criacionista, que coloca o homem no centro do Universo, e tudo justifica em seu nome, aos poucos perde lugar para correntes de pensamento arejadas pelas ideias de Bacon, Descartes, Kant, Hume, Hobbes, entre tantos filósofos iluministas. Começava a sorte dos animais.
Certamente não se esgotou a polêmica que há séculos travam sábios, clérigos e o povo sobre os direitos, e os limites, do homem na exploração do mundo natural. A mesa do debate continua, subordinada agora aos valores trazidos pela modernidade da ecologia. Biodiversidade virou credo. E o bicho selvagem ganhou status nas áreas protegidas dos parques florestais.
No mundo todo se discute a função dos zoológicos. Críticas ao sofrimento animal os fizeram alargar as baias, ampliar os espaços, climatizar os cômodos, recriar hábitats selvagens, favorecendo o bem-estar dos bichos presos. Um bom movimento. Reconhece-se que, longe daquela arrogância antropocêntrica primitiva, os animais também têm direitos. E dignidade.
Os cientistas continuam na parada. Para eles, os zoológicos podem virar laboratórios de pesquisa, úteis para tornar viável a preservação das espécies selvagens ameaçadas de extinção. A reprodução assistida de animais livrou, por exemplo, o pequeno mico-leão dourado da lista negra do desaparecimento. Trabalho exemplar do zoológico de São Paulo.
Entretanto, para a mente mais sensível, perdeu sentido ético aprisionar animais selvagens para divertir gente. Para estes, zoo é sempre perverso, mesmo bem ambientado. Nem o lazer educativo, missão pedagógica que, felizmente, se expande nesses recintos mundo afora, é capaz de iluminar os olhos tristes dos bichinhos, ou bichões, mantidos presos em minúsculas celas. Tirem-me daqui, parecem solicitar.
Domingo passado (25/9), realizou-se a última tourada em Barcelona (Espanha), proibida pelo Parlamento catalão. Ninguém apostaria nessa lei há alguns anos. Mas o ativismo em defesa dos animais conseguiu suplantar a herança cultural que se alegrava na malvadeza contra os touros. No Brasil, os rodeios foram obrigados a adotar regras de bem-estar animal para sobreviverem. Nem assim fugiram da mira dos ecologistas. Tampouco os circos. Elefantes, tigres, chimpanzés e cachorrinhos desaparecem do espetáculo. Ainda bem.
O rumo dessa mudança comportamental se impõe progressivamente na sociedade. Mas muita crueldade contra animais se pratica ainda por aí. Vejam as prisões, algumas bem decoradas, que roubam dos passarinhos a felicidade de voar livremente - afinal, para isso existem asas. Gaiola, logo, será peça de museu. Tomara.
Resta falar dos "animais" humanos. A figura de linguagem utiliza-se para desqualificar pessoas tidas como insanas, brutas, raivosas. Antigamente se dizia "besta fera". Xingar alguém de "animal" já estigmatizou o jogador Edmundo, envolvido em corriqueiras brigas no futebol. No dito popular, criminosos sanguinários são considerados selvagens, matam sem dó.
Desses tipos desumanizados, o pior, em minha opinião, são aqueles trogloditas, gente rica, que acendem luzes e arremetem seus possantes veículos contra os pobres mortais que teimam em respeitar os limites de velocidade nas estradas. Animais, não, verdadeiros idiotas do trânsito.
Animais merecem respeito.
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