terça-feira, 4 de outubro de 2011
Femininamente incorreta
SÉRGIO AUGUSTO
O ESTADÃO
Ainda não nasceu o homem capz de reduzir Gisele Bündchen à condição de teúda e manteúda
Indignação no governo. Com o corporativismo no Judiciário, que esteve a pique de sacramentar o esvaziamento do Conselho Nacional de Justiça e beneficiar os "bandidos atrás da toga"? Não. Com o corporativismo do Conselho de Ética da Câmara, que rejeitou a abertura de processo disciplinar contra o deputado Valdemar Costa Neto, um dos réus no processo do mensalão? Não.
O governo indignou-se com uma campanha de lingerie que começou a ser veiculada pela TV e na internet no dia 20 de setembro. Entenda-se por governo a ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, a quem ninguém deixaria de dar razão se nos três comerciais das calcinhas e sutiãs Hope que tanto a enfureceram mulheres aparecessem agredidas, estupradas ou estranguladas com alguma peça de lingerie. Mas, como é do conhecimento público, nos três anúncios a top model Gisele Bündchen apenas faz um casto jogo de sedução, sem tirar a calcinha ou o sutiã. E com o marido, não com um amante ou o entregador de pizza.
A sensual artimanha é legítima, corriqueira em alguns ou muitos relacionamentos e fadada ao sucesso se a lingerie estiver cobrindo o corpo de uma beldade e o marido for um panaca. Para poder bater, impunemente, com o carro do marido, estourar-lhe o cartão de crédito e constrangê-lo a coabitar com a sogra, uma mulher não pode parecer um clone do humorista Laerte, fase crossdressing, por exemplo, tem que ser top.
O que Gisele faz, nos três comerciais da Hope, é atestar o poder de sedução e da astúcia femininos, não um mero ardil de mulher submissa e parasitária. Falar em "desrespeito à condição feminina", como fizeram a ministra Iriny Lopes, sua subordinada Aparecida Gonçalves e outros baluartes do femininamente correto, é, no mínimo, um exagero. Tudo bem, a mulher do anúncio não sabe dirigir carro direito nem controlar seu consumismo conspícuo, mas ela é (e não há como descolar a imagem da personagem de quem a encarna) a Gisele Bündchen, uma das mulheres mais bonitas, famosas, bem-sucedidas, independentes e ricas do mundo.
Em matéria de "ação afirmativa" da mulher brasileira, Gisele já era veterana quando Dilma Rousseff elegeu-se presidente e Iriny Lopes deputada. A graça, meio antiga e careta, dos comerciais estrelados pela modelo (em outro, da TV Sky, ela não se importa de parar de esfregar o chão da casa para pegar uma cerveja para o marido, refestelado diante de um televisor) deriva justamente do contraste entre a personagem e sua intérprete, do absurdo das situações neles exploradas, pois me parece unânime a certeza de que ainda não nasceu o homem capaz de reduzir Gisele à condição de teúda e manteúda.
Impressiona a ignorância de certas autoridades sobre como funciona a publicidade, como ela trabalha com clichês e com o humor. Por entendê-la um pouco mais e achar que o governo tem coisas mais sérias a tratar, resisto à tentação de propor à presidente a criação de uma secretaria especial para fiscalizar o tratamento dado ao homem na propaganda e denunciar ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitário (Conar) todos os comerciais em que nós, marmanjos, somos retratados como trouxas que se deixam enrolar por mulheres de lingerie e como idiotas que babam por uma cerveja gelada ou carros que desenvolvem velocidades inatingíveis fora de uma pista de Fórmula 1 – e muito menos nas ruas de São Paulo. Para não mencionar os cornos mansos, os velhos gagás e as bichas enrustidas.
Ano passado, a SPM e o Conar proibiram um comercial da cerveja Devassa com a doidivanas Paris Hilton por seu "conteúdo sexista e desrespeitoso à mulher", por "depreciar o corpo feminino" e "desmoralizar as louras". Hilton limitava-se a esfregar uma lata de cerveja ao longo do quadril, por cima de um pretinho básico. Depreciação do corpo feminino? O de Hilton já chegou aqui depreciado por sucessivas lipos e aplicações localizadas de silicone, mas isso é outra história. A linhagem da loura burra não remonta a 1981, que foi quando (thank you, Google) Hilton nasceu. Como agora com a campanha da Hope, os vigilantes do femininamente correto – cuja retórica moralista muito me lembra as falas de Greta Garbo de Ninotchka antes de sua capitulação aos apelos do coração e aos prazeres da sociedade burguesa – não perceberam a graça do reclame: cerveja = loura gelada = Paris Hilton, uma metáfora redonda.
"Publicidade é um filé mignon para os demagogos." A frase não é minha, mas do publicitário Washington Olivetto, que, nesta era p.c., correria o risco de ter sua mais aclamada criação ("Do primeiro sutiã ninguém esquece") proibida, sob a acusação de estimular a pedofilia. Olivetto iniciou carreira no auge da ditadura militar. Embora sofresse mais pressões da censura exercida pelos clientes, pelo menos em duas oportunidades os militares interferiram em seu trabalho, vetando o verbo coçar num anúncio sobre o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo ("Em vez de ficar coçando, entre para o Liceu", exortava o anúncio) e o substantivo "menstruação" numa publicidade do absorvente O.B. (que provocou o recolhimento nas bancas de uma edição da revista Veja).
Foi justamente para manter o moralismo fardado longe da publicidade que se criou o Conar. Como outras instituições do gênero, o Conar opera por sístoles e diástoles, ao sabor das pressões do momento, às vezes se pautando mais pelos conceitos de moral e bons costumes da avó que da mãe e da filha. Quem grita mais, leva. Artigo no código de ética para justificar uma proibição é o que não falta. Falta só bom-senso. Dos gritos que ouvi, ou melhor, li, dois me chamaram atenção: o de uma leitora de O Globo, que acusou a SPM de tentar estatizar o corpo e a sensualidade, e o de um blogueiro, que sugeriu ao governo a criação da SPBCT (Secretaria de Políticas para Barangas, Canhões e Tribufus).
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