DEMÉTRIO MAGNOLI
O Estado de S.Paulo
"Não é hora para vender euros", alertou o financista George Soros, um homem que sabe ganhar dinheiro. Ingênuos interpretaram a frase como um voto de confiança na capacidade dos estadistas europeus de evitar a ruína do grandioso edifício da zona do euro. Contudo a interpretação correta é o exato oposto: Soros aposta no encolhimento da zona do euro, única alternativa consistente com a apreciação da moeda europeia. Nesse aparente paradoxo reside a chave para a compreensão do dilema que paralisa a Alemanha.
No congresso da Democracia Cristã em Leipzig, Angela Merkel entrou em confronto com seu partido. A chanceler enfrentou a proposta de formulação de critérios para a exclusão de países da zona do euro enfatizando o interesse alemão na preservação do projeto europeu. Chegou-se a um compromisso, que reafirma a desastrosa linha de conduta deflacionária em curso. A Europa marcha de olhos vendados rumo à recessão, um desfiladeiro do qual emergiria sem a coleção de nações endividadas que se debatem nas garras dos mercados em pânico. Soros olha para o lado de lá do desfiladeiro - e, por isso, não pretende vender euros.
Na Alemanha sedimentou-se o conto infantil segundo o qual a devassidão de gregos, portugueses, irlandeses, espanhóis e italianos ameaça sorver a riqueza produzida pelo árduo trabalho germânico. A força persuasiva dessa narrativa ameaça destruir o projeto europeu e lançar o mundo na perigosa aventura de uma depressão. Sob o seu signo, Berlim rejeita destinar os recursos necessários ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira e impede que o Banco Central Europeu (BCE) avalize os títulos das dívidas nacionais.
A meticulosa, mas involuntária, demolição da Europa progride nas esferas conectadas da economia e da política. Os planos recessivos de austeridade só podem ser impostos aos países endividados por meio da degradação das instituições democráticas. Na Grécia, um governo foi derrubado pela vontade de Berlim e Paris quando ousou mencionar a hipótese de um referendo popular. No lugar de eleições surgiu um Gabinete tecnocrático de salvação nacional que cumpre ordens emanadas da zona do euro. O modelo grego, aplicado à Itália, gerou o primeiro Gabinete não eleito no país desde o fim da Guerra Mundial. O euro ou a democracia - essa parece ser a encruzilhada a que chegaram as nações acossadas pelo deus das finanças.
A democracia pulsa na razão inversa dos juros cobrados pelos títulos da dívida. Se os gregos não têm voz, os italianos perderam o direito de voto e os espanhóis sufragam um governo sem poder, o Parlamento alemão continua a dar sinais de vitalidade. Ironicamente, esse é o motivo por que Angela Merkel se dobra às percepções disseminadas entre os eleitores, prolongando a agonia da Europa. Porém a inércia só perdurará até o momento da queda do triplo A que ainda ostentam os títulos da dívida francesa. No instante em que ocorrer o evento desastroso, mas inevitável, a chanceler será obrigada a falar a verdade a seus concidadãos.
Desde a união monetária alargou-se o diferencial de produtividade entre a Alemanha e os países da periferia da zona do euro. Os níveis de renda e consumo nos países periféricos cresceram à custa da elevação acelerada do endividamento público e privado. Durante uma década a integração assimétrica serviu aos interesses de todos os participantes do sistema. A máquina exportadora da economia alemã, vergada sob o peso da incorporação da RDA na paridade cambial artificial decidida por Helmut Kohl, retomou seu dinamismo graças aos mercados quase cativos da zona do euro. A conta chegou agora, evidenciando o esgotamento de um modelo que ocultou as assimetrias reais sob as máscaras financeiras do crédito e da dívida.
Não há solução estrutural sem a restauração da verdade econômica. Na moldura da união monetária há dois caminhos teóricos para restaurá-la: uma deflação impiedosa nos países endividados, com cortes nominais de salários, ou uma inflação de rendas e preços na Alemanha. O primeiro, escolhido por Berlim, revela-se politicamente inviável e conduz os mercados a um estado de pânico destrutivo. O segundo colide com o veto de Berlim, que decorre tanto de uma ortodoxia nutrida pela traumática memória da hiperinflação dos anos 1920 quanto da resistência dos exportadores alemães.
O terceiro caminho é a ruptura da zona do euro. Nessa hipótese, base da aposta de Soros, restaria um núcleo duro da união monetária, rodeado por países onde voltariam a circular as antigas moedas nacionais. O "euro nuclear" conheceria forte apreciação, enquanto os países periféricos enfrentariam anos de tormenta econômica e social. A demolição completa da União Europeia seria um resultado provável, se não fatal, da ruína da moeda única.
Lucas Papademos e Mario Monti são interventores europeus na Grécia e na Itália. Mariano Rajoy converter-se-á em quase isso quando assumir a chefia do Gabinete espanhol. Nas ruas de Atenas, Roma e Madri os pilares da Europa sofrem golpes poderosos. Mas o destino do edifício europeu será decidido em Paris. O projeto da Europa nasceu, em 1951, como um intercâmbio geopolítico franco-alemão de acomodação à guerra fria. E foi reinventado pelos dois parceiros, em 1991, sob a forma da união monetária, como uma acomodação à reunificação alemã. A Europa não pode prescindir da sintonia estratégica entre Berlim e Paris.
Dias atrás, enquanto o triplo A francês oscilava à beira do abismo, Nicolas Sarkozy ergueu a voz para pedir que o BCE seja transformado em credor de última instância das dívidas nacionais europeias. A resposta negativa de Angela Merkel zuniu como um míssil sobre a capital francesa. Os alemães, hipnotizados por um trauma do passado, esticam a corda até o limiar da ruptura. Eles agirão na hora em que a borrasca financeira engolfar a França. Mas então poderá ser tarde demais.
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