Arnaldo BlochO Globo
Comoção diante do "desastre da hora" costuma passar ao largo da discussão central sobre modelos energético, de consumo e de vida em sociedade
Quando um desastre da proporção do derrame da Chevron na Bacia de Campos acontece, é natural e legítimo que toda a indignação seja canalizada para a autora do crime: a empresa. Não tão justo que a ANP, o governo, os estados, o Ibama e a legislação sejam tão pouco cobrados por seu considerável quinhão de responsabilidade na tragédia. Por outro lado, essa indignação acaba consumindo tanta energia (humana) e "purificando" de tal maneira os pecados da coletividade, que a questão fundamental costuma ficar fora do horizonte de eventos e de interesse: não seria a matriz energética, atrelada ao petróleo, que deveria estar sendo discutida, com vigor e urgência tão decisivos quanto a aplicação sumária de uma multa maior ou menor?
Onze anos atrás, era a Petrobras que emporcalhava as águas brasileiras, numa série inigualável de acidentes, em especial o de janeiro de 2000, quando 1,3 milhão de litros de óleo vazaram. No mesmo ano, foram mais de dez desastres, e tantos outros nos anos seguintes. E a estatal está aí, como grande heroína, rainha do pré-sal. Mundo afora, outros derrames, como o do navio grego Prestige na costa espanhola, destróem a malha litorânea independentemente dos valores das multas que, em alguns casos, chegam a dezenas de bilhões, pois o modelo de exploração, em si, é de altíssimo risco.
O petróleo é nosso, vosso e dos outros. Mas também é sujo, velho e não-renovável. Mesmo assim, na segunda década do novo milênio, continua a ser o denominador comum do planeta: Ocidente, Oriente, Norte, Sul, democracias e ditaduras laicas ou fundamentalistas, nações à direita e à esquerda, todos o endossam. Sua exploração até o esgotamento em futuro distante afigura-se como fato consumado e o transporte automotivo persiste como eixo motriz nas cidades.
O que torna a equação mais complexa é que as demais fontes de energia começam a se mostrar, através de parâmetros mais ou menos objetivos, igualmente danosas, quando não mais. A matriz atômica, que representava até há pouco uma alternativa "limpa" para grande parte dos agentes, instalou, depois do terremoto no Japão, uma sombra tão horrenda (ou mais) quanto foi a da Guerra Fria: a hecatombe nascida de usinas com fins pacíficos é mais factível, hoje, do que um conflito nuclear, e os países que a adotam, como França e Alemanha, começam a refletir sobre suas estratégias.
As hidrelétricas, setor no qual o Brasil investe pesadamente, além de jamais terem sido inócuas, produzem desmatamento e comoção social crescentes entre os povos da floresta, em especial nos últimos meses. Não por acaso, Belo Monte empacou. Os biocombustíveis, tão saudados como vanguarda libertadora, também produzem desflorestamento crítico, são poluentes e sua produção extensiva é ruim para o solo, sendo que a mecanização gera grave impacto nas relações de trabalho. Uma matriz "de ponta" (embora tão antiga quanto a civilização...) como a eólica gera poluição sonora e visual e ameaça as aves, sem falar na sua intermitência, atada que está às vicissitudes do vento. A solar, tão idealizada, está longe de atender à demanda da contemporaneidade concebida como está.
A este dilema, a razão, num átimo, encontra uma resposta tão óbvia quanto radicalmente dramática: não há uma matriz "ótima" no horizonte e, talvez, nunca venha a existir algo assim. No máximo, projeções de um equilíbrio entre as fontes que reduza o consumo, desde que não limite o estilo de vida calcado na liberdade de consumir energia ao sabor desenfreado da oferta e do desejo.
Ou será miopia pensar que o problema está na matriz energética? Não estaria, sim, no paradigma de consumo (e de produção artificial da necessidade do mesmo)? Ou na própria dinâmica social, incluindo aí a noção de metrópole? Claro que não se está aventando aqui uma volta ao mundo pré-feudal ou a uma planificação baseada nos modos de vida rurais primitivos, ideais de um seleto ativismo ultra-utopista. Não é, contudo, tão fantasista assim imaginar um mundo em que o espaço físico e os recursos não sejam explorados à exaustão na batuta de noções de progresso sem lastro, e sim compartilhados em unidades menores e mais bem distribuídas, opostas à tara do adensamento permeado por colossos?
Faz menos de um século, quando ainda se imaginava o futuro como algo à frente, e não como "aquele que já chegou e passou", as cidades eram concebidas com grandes construções ligadas por dirigíveis, bondes e trens. Quase tudo era transporte público. Hoje, com a saturação da malha urbana , volta-se a encenar, timidamente, uma saudade desse futuro que nunca veio.
Parece, contudo, inevitável que a promissora relação entre ecologia e economia migre do discurso e da academia para a prática firme, e influencie a esfera política e os agentes produtivos para além da retórica e do marketing. O equilíbrio dessa tríade (economia-política-ecologia), calcula-se, é capaz de gerar mais valor do que seu desequilíbrio.
O problema está nos passos para sua implementação, cujos resultados não são imediatos e esbarram na discórdia que divide os povos em nome dos famosos interesses nacionais. Ou na dificuldade humana de, diante da inevitabilidade da morte, pensar no porvir, preferindo priorizar a maximização do gozo individual em função do tempo que resta.
Mas, se a evolução é um movimento real, e se um processo dialético "positivo" efetivamente se dá através da História; se as mulheres de hoje, mais livres, salvo caprichos de ordem estética, detestariam viver na sociedade medieval; se o racismo, embora longe de ser erradicado é, ao menos, legalmente coibido num nível cada vez mais planetário; se a homofobia é um tema de estado; então, haveria razões para acreditar que, a médio ou longo prazo, as nações encontrarão uma plataforma comum no sentido de um modelo cultural que não esgote os recursos, invertendo o conceito de qualidade de vida, hoje mais ligado à posse e ao acúmulo que ao bem estar socioambiental.
Quanto a este particular, o próprio capitalismo (se for mesmo o modelo definitivo) irá abraçar a causa preservacionista, cedendo, progressivamente, ao bom senso do ambientalismo. Outros pensam que, diante do ceticismo reinante, isso só acontecerá à beira de um colapso, ou na iminência da hecatombe, quando a vida das pessoas que ainda estão neste mundo e as de seus filhos (uma vez que netos e bisnetos não costumam influenciar os jogos "decisionais" e a vontade política) estiverem ameaçadas num curto prazo.
O problema é que um "mundo novo" em prol da salvação emergencial (se estabelecido a tempo) poderia pôr em risco a própria democracia e os nossos queridos Direitos Humanos, limitados que estaríamos em nossas prerrogativas de ir e vir, de comer e beber, de consumir luz, de habitar grandes espaços, de ir ao campo, tudo racionado por um poder central global de caráter autoritário.
Em cenários menos apocalípticos, há quem aposte que a economia direcionada para a tecnociência privilegie o "instrumental cognitivo" sobre o material . O chamado "motor informacional" (como diz o historiador da ciência Michel Serres) estaria, também, mudando a noção de espaço desde o momento em que o mundo começou a se interconectar. A cybersociedade reduziria, assim, o deslocamento e as necessidades humanas mais expansivas, num sentido contraexponencial: a energia do indivíduo se converteria (ou já está se convertendo) no combustível, na pilha essencial, da grande rede, com paradoxais benefícios para a ecologia, ainda que signifique o próprio aniquilamento da sociedade dita "real".
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