sábado, 4 de setembro de 2010

Bolívar Lamounier

Generalidades nem um pouco inocentes : uma reflexão sobre a ‘novilingua’ petista. 

 Instado a comentar a quebra do sigilo fiscal da filha de José Serra, o ministro Guido Mantega disse hoje aos jornalistas que vazamentos na Receita Federal sempre ocorreram . E acrescentou : sistema à prova de violação, não existe.




Eu mal acabara de ler as palavras do ministro e já uma indagação pululava em minha cabeça : será que as altas lideranças petistas vêm tendo alguma atração especial por generalidades ? Por que têm vários deles optado por respostas genéricas quando o que se lhes pede são explicações sobre situações bem concretas e particulares ?

Por favor, me entendam . Longe de mim contestar a relevância do assunto tratado pelo ministro. O grau de segurança dos sistemas utilizados pela Receita Federal para salvaguardar informações sigilosas é, sem dúvida, um tema da maior importância.

O problema é que respostas genéricas, mesmo relevantes, muitas vezes soam como desconversa ou tergiversação.

Gramatical e tecnicamente, o ministro Mantega se expressou de maneira adequada. O site Folha.com transcreveu-lhe as palavras : “Vazamentos sempre ocorreram. Se você olhar para o passado, tem vários que aconteceram. A gente detecta, coíbe, pune e muda o sistema. Infelizmente, depois os contraventores conseguem achar uma maneira de furar isso”.


O que vem estarrecendo o país não é a vulnerabilidade potencial do sistema da Receita – ou seja, uma quebra de sigilo considerada em abstrato.

É a violação de informações de várias pessoas estreitamente ligadas a um candidato à presidência da República, sabendo-se, ademais, que pelo menos uma parte dessas informações foi parar nas mãos de pessoas ligadas à candidatura contrária.

Quase quatro décadas atrás, o que abalou os Estados Unidos não foi a possibilidade, genericamente falando, de um grupo qualquer de delinquentes invadir um escritório na calada da noite.

Foi o episódio específico, particular, concretíssimo de Watergate : a invasão do escritório dos democratas por meliantes a soldo dos republicanos e com o conhecimento do próprio presidente da república, Richard Nixon.

Mas devo aqui retomar a interrogação que suscitei no início do texto. Será que a alta direção petista anda mesmo seduzida por pensamentos genéricos ? Estará talvez com dificuldade – quem sabe pela ação de algum vírus – de ajustar o nível de abstração das respostas ao das questões de candente interesse público que reclamam sua atenção ?

Vou dar outro exemplo. Os que me lêem certamente se lembram de um episódio ocorrido em Cuba no começo deste ano : a morte de Zapata, um prisioneiro político em greve havia 85 dias. Os dois Castro foram severamente criticados no mundo inteiro pela persistente violação dos direitos humanos na ilha .

Naquele momento, como todos também se lembram, o presidente Lula e vários de seus auxiliares mais próximos encontravam-se na ilha.

A televisão mostrou cenas constrangedoras, uma das quais foi o presidente Lula comparando os presos políticos de Cuba a criminosos comuns de São Paulo.

Por razões óbvias, um comentário do doutor Marco Aurélio Garcia, assessor presidencial para assuntos internacionais, quase não foi comentado na imprensa. Cito de memória, certo de não estar distorcendo suas palavras : “Problemas de direitos humanos ocorrem no mundo todo”.

No plano das generalidades, a declaração do ilustre assessor foi precisa, irretocável. Como contestar que violações de direitos humanos ocorrem no mundo todo ? Eu não contesto.

O problema é o desajuste entre o pensamento expresso pelo mencionado assessor e a análise ou quem sabe o sentimento que a realidade à sua volta estava a demandar. A que realidade estou aqui me referindo ? À morte de Zapata, é claro. E aos cento e muitos prisioneiros que o regime cubano mantém e qualifica como “prisioneiros políticos”.

Vem-me também à memória uma declaração feita alguns anos atrás pelo próprio presidente Lula. Foi durante uma entrevista que ele concedeu em Paris à imprensa brasileira – a uma única jornalista, se me lembro bem.

Perplexo, o Brasil inteiro queria conhecer o pensamento de Sua Excelência sobre aquela abundância inacreditável de desmandos e irregularidades que entrou para a história como o escândalo do “mensalão” : o envolvimento mais que comprovado de congressistas ligados à base do governo ; a clara demonstração de que vários deles receberam, diretamente ou por interposta pessoa, polpudas somas em espécie em dois ou três bancos ; o presidente do PT declarando ter tomado um empréstimo bancário sem ler o documento pertinente. Etc etc etc.

Foi nessa ocasião que o presidente do Brasil encampou e tornou “oficial” a doutrina Márcio Thomaz Bastos : “foi tudo caixa 2, e caixa 2 todo mundo faz ; portanto…”

Eis aí, mais uma vez, a linguagem-padrão a que me referi : um gosto que pouco ou nada tem de inocente por generalidades . Um estranho e chocante desajuste entre o que a autoridade diz e a explicação que a realidade à sua volta exige.

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