quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O que há numa escrita?


ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo



A todos nós foi dada a capacidade de falar. E a alguns a de escrever essa forma admirável de pensar. Nela, falamos sem produzir sons, mas desenhando símbolos. O lado de dentro importa mais do que o de fora. É normal escrever para si mesmo já o falar nos leva a um hospício. Na fala e na escrita há ouvintes e leitores, mas na fala o interlocutor deve estar presente, pois as palavras exigem o outro. Já na escrita, é preciso desenrolar o pergaminho, abrir o livro ou a carta para ouvir o seu autor (ou autores) e descobrir o seu espírito e as suas intenções. Ou imaginar o eventual leitor. Num caso, o som tem parentesco com o barulho e o caos; no outro, há aquele silêncio que é a marca maior do ato de escrever - essa nobre, essa soberana, essa orgulhosa e altruística ação que só nós, humanos, conhecemos, pois o escrever fica, mas o falar passa...

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Nesta semana rotineira com correios e bancos em greve, fico fascinado com a novidade de que o universo se expande - tal como o capitalismo chinês - em alta velocidade. Os chamados astrofísicos são mitômanos levados a sério, enquanto os do cinema e da televisão são jogados no lixão dessa nossa "baixa-modernidade", como me ensinou o Eduardo Portella. No caso dos astrofísicos, impressiona-me a sua obsessão com as origens do universo, algo que eles compartilham com os modestos pensadores tribais, os quais são parte de minha primeira vida como etnólogo, quando eu corria atrás de índios nas fronteiras de um Brasil que ainda não tinha conseguido morder o próprio rabo.

Ouvi, transcrevi e li à exaustão mitos de origem. Aliás, a mais celebrada teoria do mito - a do consagrado Claude Lévi-Strauss -, escrita no início dos anos 50 e desenvolvida na sua fabulosa tetralogia intitulada Mytologiques (publicada entre 1964 e 1971), os mitos existem para responder a perguntas sem resposta. Por que o mundo foi inventado? De onde veio a humanidade com a sua moral e os seus meios de sobrevivência? Como foi que os animais se distinguiram dos homens? Por que são necessários dois seres humanos para fazer um? De onde veio a morte se no início dos tempos a humanidade era tão imortal quanto os membros da Academia Brasileira de Letras?

Os contadores de mitos das sociedades sem escrita, sem constituição e sem cálculos complexos (até hoje estigmatizadas como "selvagens" e "primitivas"), dizem que o humano foi inventado num tempo imemorial, implantado pelas palavras de uma língua cuja origem é, por sua vez, contada num outro mito pois, conforme aprendi com Lévi-Strauss e, sorry..., com Thomas Mann, um mito pensa e remete a outro mito, tal como a música, os livros, os deuses, a poesia e o amor se pensam indefinidamente entre si. Assim, eles sabem como, mas não quando, o mundo surgiu. Já os nossos astrofísicos são mais apaixonados pelo quando do que pelo como.

Para qualquer ser humano, pensar em termos de nano-segundos é impossível, do mesmo modo que é humanamente inconcebível imaginar uma unidade temporal para além de 10 mil anos. Pois, tirando os poetas que, como diz Kundera, dizem tudo, ninguém pode ter um sentimento de milhões de anos. Só uma fórmula matemática traduz esse tempo intemporal. Mas entre a fórmula científica e a fórmula que eu ouvia de Tia Amália quando iniciava suas histórias - "Isso aconteceu no tempo que os animais falavam...", eu acho mais razoável e - sorry novamente - até mesmo mais racional, ficar com Titia...

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Fiz uma conferência e ganhei uma caneta-tinteiro. Na viagem de volta, preso na dura solidão coletiva de um avião lotado pelo duopólio aéreo instituído no lulo-petismo, escrevi o meu velho nome. Fui imediatamente remetido a Juiz de Fora e a uma humilde escola do bairro dos operários, quando a professora nos iniciou na nobre arte de escrever à tinta. Tomei contato com as penas de metal que, na ponta de um cilindro de madeira da pior qualidade (providenciada, é claro, pelo Ministério da Educação e Cultura), serviam como instrumentos de escrita depois de serem mergulhados nos frascos cheios daquele misterioso líquido azul-marinho.

A mestra explicava que escrever à tinta beirava o "eterno". Com o lápis tudo podia ser apagado como se não tivesse existido, exatamente como as palavras faladas a serem levadas pelo vento. Mas com a tinta, esse material perigoso (e marcante) que agora teríamos que usar, as coisas ficavam. Qualquer descuido, caía um pingo no papel, manchando-o e dele tirando a pureza feita em branco; por outro lado, se a "pena" ficasse saturada, a escrita transbordava o papel. Fomos depois apresentados a um personagem importante: o mata-borrão que como um guardanapo à boa mesa, acompanhava o ato de escrever à tinta.

Escrever à tinta dá asas à fantasia de imortalidade. É a antessala do livro, do decreto, da placa de bronze e do "documento". Pois entre nós - humanos -, a execração, o ódio, e o insulto cabem também ou até mais no papel do que na fala. A fala, sendo curta e exigindo a pessoalidade, tem mais limites do que a carta escrita com maldade e ódio, vingança e ressentimento. Ademais, a "escrita", como os decretos e as leis, pode ser anônima ou coletiva. Pois como aprendi com aquela humilde professora, o que falamos fica na memória, mas o que foi escrito permanece. Seja como um ato de amor ou como prova de arrogância e de transtorno mental. Cuidado, dizia ela, com o que você escreve à tinta - com aquilo que, impresso, não pode ser apagado.
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