O tema da imigração é algo que a sociedade brasileira precisa começar a se interessar deixando, se possível, a emoção e a ideologia de lado. O mundo atual não é lúdico e não devemos enaltecer apenas as características oníricas de quem aqui aporta.
4 000 mil haitianos no Acre, via Bolívia, requer cuidado e a Polícia Federal e o Min Justiça, com uma surpreendente independência estão, sim, preservando nossa sociedade. Ademais quem determina a política exterior e as relações internacionais em nosso país é o Senado Federal e não a presidente, só que, com a mão no cofre orçamentário, aqueles dançam conforme a batuda desta.
O texto abaixo tem duas finalidades, a primeira de ressaltar muitos pontos que, de fato, o BRASILEIRO, deveria ser melhor capacitado e segundo é o de como uma pessoa com um bom nível cultural, selecionado para escrever em um jornal importante, não consegue enxergar além de sua janela. Neste particular, a propósito da surpreendente capacidade de haitianos, fugindo do nada, conseguirem recursos para pagar para coyotes bolivianos -logo os bolivianos...que coisa...- segue um importante artigo logo abaixo que dá uma luz nestas trevas...
Os ilegais e o Brasil legal
JORGE FONTOURA
Correio Braziliense
A Polícia Federal tem impedido a entrada de haitianos na ponte da Brasileia, no Acre, e em Tabatinga, no Amazonas, a reescrever mais um capítulo da tragédia universal dos refugiados, agora em nossas portas. De forma legal, já recepcionamos grande contingente deles, o que não justifica o anunciado uso de mediadas draconianas, com os rigores da lei, para evitar que venham muitos mais. Usa-se o simplismo ingênuo, de cara anglo-saxã, de proibir, vigiar e punir, na convicção de que em migrações indesejáveis basta fechar-se a porta, a ponte, o porto, para que tudo esteja resolvido.
Os haitianos são sobreviventes de inúmeras tragédias, algumas naturais, como terremotos e tempestades. Outras humanas, como o processo histórico trágico de que são vítimas, com sucessivos surtos de exploração e desgoverno, a gerar hordas errantes, em busca de nova vida e de novos horizontes. Como metáfora, o Haiti é a nossa África e não podemos fazer dela o que os europeus fazem com seus extracomunitários, estigmatizados até pela expressão infeliz que inventaram.
Se os haitianos querem vir para o Brasil, nada impedirá que o façam, com ou sem polícia. Por um lado, imigrantes clandestinos são obstinados e corajosos para desafiar as leis; por outro, podem constituir força de trabalho inigual, como o Brasil hoje necessita, em tantas novas áreas de desenvolvimento, carentes de empenho e de disposição. O Canadá, que está na moda, recebe mais de 250 mil imigrantes por ano, em política inteligente e de benéficos resultados para toda a sociedade.
Aqui, no caso dos haitianos, vê-se desde logo imenso campo de trabalho potencial, como no setor de hotelaria primitiva de que dispomos, a beneficiar-se com o aporte maciço de trabalhadores dispostos e hábeis em línguas internacionais. A construção civil, os grandes projetos hidrelétricos, a cultura açucareira, entre outros, são setores que poderiam capitalizar o elã desses trabalhadores, sem prejudicar a mão de obra nacional.
Soluções legais para a avalanche de imigrantes que se prenuncia são difíceis à luz do Novo Estatuto do Estrangeiro, a Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, que, apesar do nome, já é legislação obsoleta e ultrapassada. A falta de respostas fáceis, no entanto, não representa obstáculo à capacidade criadora do Ministério da Justiça, em particular do secretário executivo, Luis Paulo Barreto, reconhecida autoridade em temas de direito internacional e do direito do estrangeiro.
Talvez em primeiro momento fosse desejável conceder visto temporário de trabalho ou algo de natureza emergencial, apenas para acomodar juriricamente a gravidade da situação. Depois, seria essencial o engajamento da sociedade civil, em grande campanha nacional, para reunirem-se esforços na recepção ordenada dos tantos infelizes que nos vêm procurar.
O Sebrae, os sindicatos, as delegacias regionais do trabalho, os clubes de serviço, as associações comerciais, entre tantas outras instituições, seriam essenciais na condução de programas abrangentes de treinamento e de incorporação de haitianos a nosso mercado de trabalho. O Brasil, que dá lições ao mundo com sua atuação na Minustah (Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti), poderia agora dar outro exemplo dignificante, a exercer na prática a vocação generosa do povo.
Se no passado o Brasil é em certa medida a história de imigrações desordenadas e caóticas que ocasionaram aflições e heroísmos desmedidos, no presente, razões e motivações não nos faltam para bem acolher estrangeiros. Afinal, eles são apenas como muitos de nossos ancestrais que um dia também quiseram ser brasileiros.
Por fim, se assim o fizermos, demonstraremos que nossa Constituição não é apenas um amontoado de letras frias na defesa de direitos humanos e de valores humanitários abstratos. Superaremos assim a retórica para passar a ação, com atos de governo e com engajamento cívico e social, na contundência inequívoca das decisões de Estado.
A droga é umas das principais forças na vida política do Haiti
Ben Fountain*
Em Dallas (EUA)
Eloise De Vylder
Em 1999 fiz uma pequena viagem da capital do Haiti, Porto Príncipe, até a charmosa e lânguida cidade de Kenscoff, a algumas horas de carro pelas montanhas. Eu já havia feito essa viagem antes, mas fazia alguns anos, e à medida que a estrada subia não pude evitar minha surpresa com o aumento do número de mansões que haviam tomado conta dos morros.
Mulher espera pela distribuição de comida em Porto Príncipe; o tráfico de drogas exerce uma influência fora de proporção em diversos setores da sociedade haitiana
Se antes a mesma estrada já havia oferecido vistas pacíficas de plantações em terraço, trechos de floresta, aglomerações de casinhas modestas, agora predominavam mansão atrás mansão, como se os McMansions dos subúrbios de Dallas tivessem sido transplantados para as montanhas de onde se avista Porto Príncipe. Será que descobriram petróleo no Haiti? À medida que cada curva revelava novas vistas da arquitetura pretensiosa, meu amigo haitiano no banco do passageiro balançava a cabeça, murmurando a mesma palavra o tempo todo:
Drogue. Drogas.
Desde o terremoto que devastou o Haiti, muita atenção tem sido dada, com razão, para a convergência de forças econômicas, políticas e culturais que deixaram o país tão vulnerável à essa catástrofe. Muitos olharam para o passado em busca de orientação, e as semanas recentes nos ofereceram análises honestas e com frequência perceptivas da história do Haiti, indo até suas origens coloniais brutais, seu orgulho, a guerra de independência impressionante e improvável, e continuando pelos 200 anos seguintes de governança sobretudo miserável, o catálogo deprimente de revoltas, golpes, traições e intervenções – normalmente auxiliado, senão promovido inteiramente, por potências estrangeiras – que esvaziaram o Haiti de boa parte de sua riqueza e esperança.
Mas se formos reconstruir o Haiti, ou não somente reconstruir, mas transformar, então o tráfico de drogas precisa ser reconhecido como o que de fato é: uma das principais forças – pode-se dizer, a força dominante – na vida política do país durante os últimos 25 anos.
Um relatório de 1993, escrito por John Kerry enquanto era presidente do Subcomitê de Terrorismo, Narcóticos e Operações Internacionais do Senado, afirmava que “há uma parceria feita no inferno, na cocaína e nos dólares entre os cartéis colombianos e os militares haitianos”. Na época, o Haiti estava no caminho para se tornar o principal ponto do Caribe de embarque da cocaína que ia da América do Sul para os Estados Unidos, e embora os atores individuais possam ter mudado desde aquela época, a parceria continuou a se fortalecer. Hoje, o tráfico de drogas é um negócio de um bilhão de dólares por ano no Haiti, gerando lucros tremendos num país onde a maioria das pessoas sobrevive com poucos dólares por dia.
ONU reforça segurança na distribuição de alimentos no Haiti
Em qualquer país, esse tipo de riqueza forneceria um amplo incentivo e meios para adquirir poder, mas no Haiti o tráfico de drogas exerce uma influência fora de proporção em outros setores da sociedade. A narrativa da política haitiana desde a queda do regime de Duvalier em 1986 acompanha de perto a ascensão do tráfico de drogas. À medida que o Haiti lutou para realizar eleições nos anos imediatamente seguintes a destituição do presidente Jean-Claude Duvalier, provas persuasivas apontaram para um envolvimento no tráfico de drogas do coronel Jean-Claude Paul e outros altos oficiais, uma facção dos militares haitianos que foi, talvez não coincidentemente, especialmente impiedosa em sua supressão do movimento democrático.
Os militares continuaram intimamente ligados ao tráfico de drogas durante o breve primeiro mandato de Jean-Bertrand Aristide como presidente, interrompido pelo golpe de 30 de setembro de 1991, e pouco mudou depois de sua saída. De fato, o chefe de polícia de Porto Príncipe, tenente coronel Joseph Michel François, emergiu como próximo homem-chave no tráfico de drogas do Haiti, comandando uma notória rede de soldados e paramilitares que, além de expandir o tráfico de drogas do país, deu andamento a um impiedoso programa de terrorismo político no qual milhares de haitianos foram assassinados.
Esses anos de intensa repressão coincidem com a ascensão do Haiti como o principal ponto de embarque de cocaína da região, posto que manteve até mesmo depois que o governo civil foi restaurado em 1994. Em 2000, cerca de 75 toneladas, ou 15 % da cocaína consumida anualmente nos Estados Unidos, passava pelo Haiti. A corrupção ligada às drogas e a violência se tornaram endêmicas durante o segundo mandato de Aristide como presidente, com muitas pessoas de seu círculo – incluindo o chefe de segurança do Palácio Nacional, o diretor da Polícia Nacional Haitiana, o chefe de uma unidade de investigações da Polícia Nacional, e o presidente do Senado haitiano – eventualmente cumprindo penas em prisões norte-americanas por violações às leis de narcóticos e de lavagem de dinheiro dos EUA.
Praticamente há duas décadas e meia, as tentativas do Haiti de estabelecer as instituições e normas da sociedade civil foram subvertidas ou esmagadas, com frequência com a atuação evidente do tráfico de drogas. O governo do presidente Rene Preval tomou passos mais largos do que qualquer outro governo anterior em direção a uma verdadeira reforma, mesmo assim o progresso até de 12 de janeiro foi tênue. A Polícia Nacional continuou sendo uma força fraca e incerta; o judiciário era disfuncional; os ministros do governo eram altamente politizados e corruptos; conceitos de transparência, direitos humanos e Estado de direito eram, na melhor das hipóteses, frágeis.
Agora, não falta debate sobre como melhor reconstruir o Haiti. Planejar melhor. Construir melhor. Pressionar por uma reforma institucional. Derramar muitos bilhões de dólares em ajuda internacional, com uma fiscalização maior, soluções mais firmes, maior envolvimento do público haitiano e dos setores privados. Uma escola de pensamento oposta diz que a ajuda deve ser totalmente cortada, forçando os haitianos a assumirem a responsabilidade sobre o destino de seu país; apenas a terapia de choque pode romper com o ciclo contínuo de dependência, disfunção e pobreza auto-imposta.
Para qualquer lado que você se incline, as chances são de que o poder e os lucros do tráfico de drogas condenarão sua prescrição à irrelevância. Sim, os norte-americanos mostraram uma tremenda generosidade para com o Haiti desde 12 de janeiro – mais de US$ 20 milhões em doações à Cruz Vermelha, US$ 57 milhões pelo telethon Hope for Haiti Now, que continua arrecadando, os aviões particulares congestionaram os aeroportos do sul da Flórida, esperando um lugar para pousar em Porto Príncipe. Esta é a parte da história que nos faz sentir bem.
Mas há a outra parte. Os Estados Unidos são o maior consumidor de cocaína do mundo, o que significa que há uma linha que liga o nosso vício estupendo pela droga às condições no Haiti, a todos esses anos de governança tóxica que estabeleceram o cenário para tanta destruição, tantos mortos e feridos.
Então chegamos a isso: o país mais rico do hemisfério e o mais pobre, a primeira república e a segunda, presos juntos na falha moderna mais gritante do Novo Mundo, a guerra contra as drogas. Seria ingênuo esperar que os norte-americanos larguem a cocaína a curto prazo pelo bem do Haiti. Mas seria igualmente ingênuo não reconhecer esse imenso obstáculo no caminho do Haiti, e o papel que tivemos em criá-lo. Nossas aspirações para o Haiti passam diretamente pelos nossos vícios.
*(Ben Fountain é autor da coleção de contos “Brief Encounters with Che Guevara” [“Breves Encontros com Che Guevara”.)
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