Roberto Campos
27/02/2000
George Orwell, o escritor inglês que nos deu algumas das obras que melhor iluminaram o ambiente dos difíceis anos que duraram da Depressão à Queda do Muro de Berlim, entre elas as duas terríveis sátiras "1984" e "Animal Farm", foi antes de mais nada um homem de excepcional integridade. Firme nas suas convicções de esquerda, foi voluntário contra os franquistas, na Guerra Civil espanhola. Ferido em combate (numa campanha admiravelmente contada em "Homenagem à Catalunha"), enfrentou com coragem os comunistas, quando estes, na tentativa de assumir o controle do movimento, traíram seus outros camaradas de esquerda. Foi depois objeto de um patrulhamento feroz que tentou transformá-lo numa "não-pessoa". Morreu em 1950, aos 47 anos.
Águas políticas passadas, talvez. A União Soviética, a ex formidável pátria do socialismo, não existe mais, esfarelada em repúblicas conflituosas. Para felicidade do gênero humano, não se realizaram as sombrias previsões orwellianas de "1984" _uma sociedade hipertotalitária, metida em guerras intermináveis, impondo ao povo um brutal controle do pensamento e da expressão_, o "novopensar" (newthink) e a "duplafala" (doublespeak). A televisão não se tornou um instrumento de massificação ideológica em favor do Big Brother, sendo, ao contrário, um instrumento de denúncia, que dificulta o ocultamento de selvagerias ditatoriais.
As previsões de Orwell não se realizaram ao pé da letra. Mas os verdadeiros escritores têm o dom de entrever formas da realidade que escapam facilmente aos olhos da multidão. Porque alguma coisa do "novopensar" e do "duplofalar" se encontra em nosso cotidiano. Raramente as mensagens que a humanidade troca entre si são meramente descritivas. Em geral, atingem-nos mais pelas associações de idéias e sentidos. Não haveria poesia, nem literatura, nem mesmo prece, sem adjetivos, metáforas e toda a ilimitada teia de ligações que vão se estabelecendo entre as palavras, ao longo do tempo. Mas o que faz prece ou poesia pode fazer também intriga e malefício. Questão de intenção e de dose.
Parece que mesmo línguas robustas, como o inglês, vêm perdendo a velha simplicidade por conta da "duplafala". Nos Estados Unidos, parece praga. Não há muito, uma companhia que estava mandando embora 500 empregados esclareceu: "Não caracterizamos isto como dispensa de pessoal; estamos gerenciando nossos recursos administrativos". Há consultores que trabalham especialmente no ramo de mandar gente embora e apresentam seus serviços como "consultoria para terminação e colocação externa" ou "engenharia de reemprego". No Canadá, um acidente de helicóptero foi higienizado como "desvio de um vôo normal". E os advogados do famoso jogador de futebol americano O. J. Simpson, o tal que teria matado a mulher (em quem dava surras) e o amante dela, pintaram essa relação como mera "discórdia marital". E consta que na Universidade da Califórnia, em Berkeley, a turma da educação física passou a chamar-se de "departamento de biodinâmica humana".
Exemplos inesgotáveis, alguns engraçados, outros ridículos. Mas embaçam a percepção da realidade, embora hoje não tão sinistros como no auge dos totalitarismos.
Uma ilustração recente tem pegado por aí muita gente distraída. Temos ouvido muito a expressão "excluídos" para designar grupos de pessoas de baixa renda ou supostamente marginalizadas. Há palavras apropriadas para as situações concretas: "pobre", "analfabeto", "doente", "desempregado", "drogado", por exemplo, designam situações em que determinadas pessoas objetivamente se encontram num dado momento. No resto da sociedade, espíritos decentes certamente sentirão um dever de solidariedade e, sem dúvida, pensarão no que possa ser feito para mudar esse estado de coisas.
A exclusão, no entanto, supõe uma ação deliberada contra o excluído, no caso, essa gente pobre, desempregada etc. Portanto subentende que alguém impeça à força que ela tenha acesso a bens que todos desejam. O "excludente" passa a ser indiciado como "culpado" por essa situação penosa.
Essa generalização é safada, porque sub-repticiamente legitima todas as demandas de supostos "excluídos", à custa dos demais. Houve políticas deliberadas (e criminosas) de exclusão, como a nazista, contra os não-arianos, e a comunista, contra os não-proletários.
Mas há formas de "exclusão" legítimas e até indispensáveis à existência do indivíduo e da espécie. Os países costumam fechar suas fronteiras para não serem atropelados por massas de imigrantes deslocados de outras paragens. O abuso da palavra "excluído" é particularmente frequente nas conferências internacionais. Muitos países se queixam de serem "excluídos" pela globalização, pela revolução tecnológica ou pelo liberal-capitalismo. Ao mesmo tempo praticam um nacionalismo excludente, que hostiliza capitais estrangeiros, supridores de poupança e tecnologia. Ou se impõem automutilação tecnológica, como o Brasil, com sua política de nacionalismo informático. Para não falar de países recipientes de ajuda externa, que gastam dinheiro em armamentos ou guerras tribais.
Essa confusão semântica atrapalha a compreensão do desenvolvimento econômico. Antes do processo de acumulação que é a civilização, os bandos dos nossos primitivos tataravós viviam em "equilíbrio" com a natureza _quer dizer, em média, pouco mais de 10 anos, chegando a em torno de 20 anos ao tempo de Roma, e só alcançando 40 anos nas sociedades industrializadas, no final do século passado. Fome, frio e doença eram a regra geral. E permanente guerra de pilhagem entre tribos e clãs. A escassez universal era a regra que gerava a violência.
A aquisição da racionalidade tem sido um longo esforço humano de "inclusão" ao longo de milênios. A globalização é um fenômeno de "inclusão" e não o contrário. Pelo menos usar as palavras sem deformar a mensagem está nas nossas mãos. E é parte da solução.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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