domingo, 22 de janeiro de 2012

A palavra e o sexo

RUTH DE AQUINO
REVISTA ÉPOCA

É justo que a sociedade condene automaticamente um homem acusado de estupro?

Era uma vez Emir. Imigrante marroquino, em Paris, apaixonou-se por uma belga. Ela foi morar no apartamento que ele alugava. Emir é garçom e músico. Brigas azedaram o amor e o casal se separou. Um dia, ela telefonou. Insistiu num encontro para discutir a relação. Foi para a casa dele. Beberam. Fizeram sexo. Na manhã seguinte, cedo, ela foi à delegacia e o acusou de estupro. Disse que Emir a forçou a fazer o que não queria.
Não havia marca de violência. Era a palavra do homem contra a da mulher. Ele jurava ser inocente. Afirmou que o sexo tinha sido consentido. Emir contratou advogado, foi julgado e condenado a três anos de prisão. O julgamento estarreceu seus patrões, franceses. Amigos de Emir acharam a condenação sexista e racista. Ele ficou incomunicável um bom tempo.
Acabo de reencontrar Emir, servindo mesas novamente em Paris. Ficou um ano na prisão. Tem uma companhia inseparável: a tornozeleira eletrônica. Flutua entre dois mundos – o de seu apartamento alugado, único bem que conservou, e o restaurante. Se decide, dentro do metrô, mudar a conexão para o mesmo destino, recebe imediatamente um telefonema e é convocado pela Justiça a se explicar. Se escolhe outra rua em seu trajeto, o celular toca.
Emir é grato ao juiz pela liberdade vigiada, que compara a uma ressurreição. Não quer processar ninguém. Só provar que nunca foi uma ameaça às mulheres. Tenta reconstruir suas economias, porque faliu. Ouviu dizer que a ex se mudou para a Itália com um amigo dele e com a indenização que foi condenado a pagar. Emir sempre foi gentil, atencioso, educado. Está mais calado, por temor e mágoa.
A lei hoje é mais rigorosa em suspeitas de abuso sexual. A palavra do homem vale bem menos que a palavra da mulher. É justo? Há casos tenebrosos de estupro contra meninas, moças, mulheres, filhas, sobrinhas, pacientes. Podemos concluir então que o homem, pelo poder e força física, tende a estuprar? Podemos nos permitir algumas injustiças escabrosas para equilibrar o jogo?
“A história fala de homens que submeteram mulheres a viver com medo e intimidadas, e o sexo também se prestou a isso”, diz o psicanalista Sócrates Nolasco. “Todavia, os tempos são outros, e o estupro, prática de alguns homens, passou a ser considerado uma prerrogativa masculina. Algumas mulheres usam essa prerrogativa para manipular ou tirar proveito de uma situação. Acontece nas varas de família, como vingança. Ou no caso da camareira em Nova York com Strauss-Kahn.” Nesta coluna, levada pela gravidade da acusação, o histórico de DSK e a reação da Justiça americana, dei crédito à camareira e me retratei pela precipitação.
As fronteiras entre o sexo consentido e o abuso costumam ser claras. Às vezes, não são. Penetramos então no terreno obscuro da subjetividade. O efeito do álcool ou da droga torna a mulher vítima potencial do homem? A mulher adulta precisa saber quem ela leva para a cama ou na cama de quem ela vai parar. E com que fim. Normalmente, não é para conversar ou rezar, mas ela tem o direito de mudar de opinião. Ele também. Se a mulher quiser perder o controle sobre si mesma, dificilmente controlará os atos do outro.
O que aconteceu com Daniel, do BBB, me pareceu exemplar e simbólico. Antes mesmo de se ouvir Monique, a moça que contracenou com ele as carícias explosivas sob o edredom, a sociedade já condenara o homem. Foi estupro. Foi abuso. Ouvi mulheres indignadas com os comentários dos machistas de plantão: ela pediu, ela estava de sainha, ela o espicaçou. Sempre existirão os ignorantes que acham que uma mulher atraente e sensual pede para ser abusada. Mas ainda assim eu me perguntava: quem disse que a moça sofreu abuso? Ah, ela estava bêbada e não podia discernir o que fazia.
Argumentei que homens bêbados também são levados para a cama por mulheres levemente mais sóbrias e, no dia seguinte, não se lembram de nada. E nem por isso a mulher é acusada de estupro. Ouvi de amigas que um homem bêbado não consegue transar obrigado. Será? Tem homem que, ao perceber com quem dormiu, pensa: “Eu só posso ter bebido demais”. Machismo meu? Ou vontade de não infantilizar as mulheres e não demonizar os homens?
O que chocou na semana passada foi a ideia de que um “estupro” teria sido transmitido pelo BBB, um dos programas mais vistos no Brasil, também pelas classes A e B. A ira prematura contra Daniel desabou quando Monique declarou que tudo foi consentido. O comportamento dos participantes de reality shows em todos os países – e na França inclusive – costuma ser inadequado. Não assisto porque não gosto do formato nem me identifico. E você, assiste?
Mais cruel que os reality shows é o enredo real que aprisionou Emir. A meu ver, ele sempre foi inocente. Mas de que adianta minha opinião?
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Um comentário:

  1. Depois de ler o artigo e enxugar - literalmente - as lágrimas, diante da injustiça absurda cometida contra Emir, lembrei-me do meu primeiro ano universitário, quando precisei realizar um trabalho de pesquisa, cujo tema era "qual é a sua principal fantasia sexual", na disciplina de estatística. Nesta pesquisa (um trabalho acadêmico e não profissional) entrevistei apenas estudantes (mulheres) que cursavam Psicologia como eu, do primeiro ao quinto ano.
    Para preservar a identidade, diante de um assunto tão íntimo, tive a ideia de usar envelopes de depósito bancário, com aquela tarja adesiva. Cada uma das centenas de respondentes recebeu um questionário e um envelope, sendo instruídas para respondê-lo, dobrá-lo e lacrá-lo dentro do envelope. No dia do retorno, eu me virava e elas mesmas colocavam o envelope de forma aleatória em um “baralho” de outros envelopes lacrados idênticos. Mas vamos ao que importa. Resultado: cerca de 10% tinham fantasias de categoria idílica (estar sozinha num paraíso ou ilha com seu homem desejado, por exemplo). Umas 20% fantasiavam ser prostitutas e humilhadas. Muito bem: adivinhe qual foi a principal fantasia para a grande maioria? Cerca de 70% das mulheres de todas as faixas de idade e classe social sonhavam e fantasiam seu próprio estupro. Tal pensamento norteava e fazia parte constante de práticas sexuais tanto solitárias como conjugais, sendo condição imprescindível durante preliminares e estando presente constantemente em sonhos eróticos.
    Muito tempo depois disso, navegando pelos mares eletrônicos da rede mundial, encontrei no conteúdo de um site feminista, a afirmação de que todas as relações sexuais entre um homem e uma mulher são sempre estupros, pois nenhuma fêmea no mundo animal “quer” o sexo com um macho. Segundo elas, as fêmeas são sempre “obrigadas” a copular devido a instintos e “drives” internos muito intensos e desagradáveis, cujo alívio e resolução são obtidos com a monta e a prenhez. Algo parecido com o viciado em heroína que, durante a abstinência, experimenta dores horríveis pelo corpo, aliviadas assim que recebe a droga. Assim, na espécie humana, mesmo fazendo sexo com consentimento, o homem ainda estaria aproveitando-se de vítimas, mulheres reféns de seus próprios instintos dolorosos. No mais, segundo elas, qualquer outro argumento afetivo, psicológico ou religioso sobre o sexo consentido entre um homem e uma mulher não passaria de uma desculpa cultural, historicamente “planejada” em todas as civilizações patriarcais para legitimar a obsessão dos homens por dominar e subjugar a mulher. Não fico, portanto, surpreso com os absurdos de julgamentos que condenam inocentes como Emir. Em “11 minutos”, Paulo Coelho comenta sobre o pavor por mulheres que homens começam a experimentar, diante das histórias reais de prostitutas que se valem do seu sexo e de sua “fragilidade” para covardemente mentirem diante de juízes, recebendo vultuosas quantias de indenização por assédio e estupro.

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