CELSO MING
O Estado de S.Paulo
O governo da Argentina não mostra nenhum escrúpulo ao atropelar sistematicamente tratados internacionais quando se trata de proteger sua balança comercial.
A partir de 1.º de fevereiro, passará a exigir pedido de licenças não automáticas de importação para todos os produtos, independentemente da procedência. Seus fiscais aduaneiros dirão o que pode ser importado e quanto. É um instrumento burocrático que leva tempo para ser examinado (oficialmente, no máximo 15 dias), com o qual se busca declaradamente emperrar o comércio.
Essa exigência aprofunda o jogo protecionista que até agora se limitava a conter a entrada de produtos da linha branca (geladeiras, máquinas de lavar roupa, fogões, etc.), artigos têxteis, calçados, baterias e tratores.
O objetivo final do país é obter neste ano um superávit comercial superior a US$ 10 bilhões (o do ano passado foi de US$ 10,9 bilhões), conforme a Agência Estado apurou a partir de documento interno vazado para a imprensa.
Essa decisão tem a ver com as dificuldades que a Argentina enfrentando desde o calote de 2001 à sua dívida, agravadas no início deste ano com a perspectiva de quebra de pelo menos 23% na safra de milho e de outros 5% na de soja, por ação de uma séria estiagem. As receitas com o Imposto de Exportação (que agora devem reduzir-se) cobrem 20% da arrecadação. A ideia é cortar despesas com importação, de maneira a enfrentar a redução de caixa com que contava para cobrir o rombo externo.
Não dá para negar que o saldo do comércio bilateral é favorável ao Brasil e que isso tende a se ampliar (veja o gráfico). É o resultado da política econômica predadora colocada em prática pelas duas administrações Kirchner, que desestimula o investimento e o avanço tecnológico e, nessas condições, derruba a competitividade do produto industrial argentino.
De maneira informal, o governo brasileiro já passou o recado de que não gosta do jeito folgado e irresponsável com que o governo argentino lida com compromissos internacionais, sobretudo com os do Mercosul. O ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, por exemplo, já declarou o que até agora nenhum ministro de Estado do Brasil ousou dizer em público: a Argentina se tornou "um problema permanente".
O presidente da Associação Brasileira de Empresas de Comércio Exterior (Abece), Ivan Ramalho, enfrentou a catimba comercial da Argentina durante os 16 anos em que ocupou a Secretaria Executiva do Ministério do Desenvolvimento, 8 deles durante o período Fernando Henrique e a outra metade do tempo no período Lula. Para ele, se engolir mais esse sapo, o governo brasileiro estará contribuindo decisivamente para a escalada protecionista do governo argentino e para as distorções que virão em seguida.
E Ramalho não esconde por qual setor o governo deve começar o revide. "A área comercial mais sensível para eles é o setor automotivo." Ele sugere que, pelo menos por simetria, o Brasil também imponha à Argentina licenças prévias para importações de veículos.
Curiosamente, há alguns anos, o Brasil foi condenado em tribunal de arbitragem do Mercosul, convocado pela Argentina por também impor travas burocráticas em seu comércio bilateral.
Essas coisas não têm cabimento entre países-membros de uma área que se supõe estar em estágio mais avançado de integração (união aduaneira) e que, no entanto, não consegue ser nem zona de livre comércio, o que prevê livre circulação de mercadorias. Mostram que os tratados do Mercosul deixaram de ser apenas queijos esburacados. Estão cada vez mais desmoralizados.
Já não eram instrumentos de integração econômica e comercial. Agora correm o risco de deixar de ser também de integração política - condição que o Itamaraty ainda pretendia preservar.
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