segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A CASA CAIU

PASSOU DO LIMITES
Alessandra Medina e Marcelo Marthe
Veja



O mau gosto e a vulgaridade dos reality shows trazem audiência, mas o público não engole qualquer abuso. O caso de sexo no BBB da semana passada é prova disso


 A ação se desenrola em pouco mais de sete minutos. Em um quarto escuro, flagrado por meio de lentes especiais para gravações noturnas, um dos participantes da 12" edição do Big Brother Brasil faz os movimentos característicos do ato sexual. Sob o edredom, a parceira permanece imóvel, com o rosto escondido pelo travesseiro. Transmitidas ao vivo por volta das 6 horas da manhã de domingo pelo sistema de pay-per-view, essas cenas parecem, aos olhos dos editores instalados num caminhão cheio de equipamentos ao lado do cenário, mais "um amasso como tantos outros" no reality show da Rede Globo. Na TV paga, uma legenda busca atiçar a curiosidade dos espectadores: "Ele parece acariciar a sister, mas a loira não se move". Em poucos minutos, contudo, pipocam protestos indignados no Twitter. Consultado, o diretor do BBB, J.B. de Oliveira, o Boninho, manda que se siga adiante. "Vamos ver o que acontece", diz. E o que acontece, nos dias seguintes, põe Boninho e a emissora na berlinda. A suspeita de que a estudante Monique Amin estivesse desacordada e de que, portanto, o modelo Daniel Echaniz tenha cometido o crime de estupro fez a indignação explodir nas redes sociais.

 Na TV, a linha que separa o simples mau gosto da transgressão inaceitável de limites éticos é muitas vezes indefinida e turva - na verdade, parece mesmo nem existir mais. Mas a indignação massiva dos cidadãos que viram a cena da madrugada ao vivo ou pela internet sinaliza de modo inequívoco que o público sabe, sim, decidir onde fica essa fronteira - e avisou que o BBB a ultrapassou.

 O resultado imediato do clamor foi a transformação do BBB em caso de polícia: após interrogar os dois envolvidos em pleno Projac, a central de estúdios em que são gravados os programas da Globo, o delegado Antônio Ricardo Nunes apreendeu fitas com trinta horas de imagens, além das roupas íntimas dos envolvidos - e do infame edredom de oncinha. Nas próximas semanas, uma perícia dirá se esse material traz ou não indícios concretos de que houve abuso sexual dentro da casa mais devassada do Brasil. Qualquer que seja a conclusão, não há dúvida de que o episódio provocou uma grave crise, sem precedentes na história do programa.

 As reações iniciais diante dos fatos não ajudaram. De todos os gracejos já proferidos por Pedro Bial, nenhum soou tão tragicamente infeliz quanto o comentário levado ao ar na edição do domingo 15. "O amor é lindo", disse o apresentador depois da exibição do que parecia uma corte romântica normal entre os dois participantes na festa regada a vodca e energético que varou a madrugada de sábado para domingo na casa do recém-iniciado BBB 12. Segundo a versão mostrada na TV aberta, Monique teria resistido um tantinho às investidas de Daniel, mas acabou trocando um beijo com ele - e ambos fecharam a balada entre carícias mútuas na cama, comportamento condizente, enfim, com o que se costuma ver no programa. Àquela altura, entretanto, a reação em cadeia já avançava na internet - e essa tentativa de acobertamento dos fatos, completada com a corrida para tirar do YouTube as imagens do possível delito, só aumentou o mal-estar. Boninho escolheu a pior defesa e atribuiu as acusações a Daniel - que por acaso é negro - a racismo dos usuários das redes sociais.

 A direção do BBB - que, mais que qualquer outro programa da TV brasileira, se vale da internet como forma de multiplicar sua repercussão - subestimou o poder mobilizador da rede. Enquanto Bial fazia sua esdrúxula celebração do amor alcoolizado, o tópico "Danielexpulso" era um dos mais populares no Twitter. A causa ganhou adesão até de uma estrela da casa, Deborah Secco. Resume Mario Marques, diretor executivo da consultoria LabPop Content: "A emissora se preocupou em dar satisfação a vários públicos - menos ao da internet, em que a polêmica nasceu". Segundo levantamento feito pela empresa a pedido de VEJA, antes do episódio o número de menções à programação global no Twitter era de cerca de 65 000. Na segunda-feira, quando o programa enfim resolveu expulsar Daniel, atingiu a marca de 116 000. A imensa maioria era de caráter negativo - o que não chega a surpreender, dado o modo eufemístico com que Bial justificou a saída do modelo. O rapaz teria apresentado um "comportamento inadequado" que infringiria o "regulamento" do programa. Não se especificou que comportamento teria sido esse - nem se mencionou a possibilidade de que, mais do que o tal "regulamento" do BBB, se tenha infringido a lei brasileira.

 Na terça-feira, a cúpula da emissora e seu departamento jurídico entraram em ação para produzir uma resposta que desse conta da enxurrada de comentários negativos nas redes sociais. O caso foi tratado, pela primeira vez com clareza, pelo Jornal Nacional. E foi mencionado por Bial, de forma breve e constrangida, na abertura do BBB. Essa reação, obviamente, foi estimulada por certos fatores exógenos: enquanto a Polícia Civil carioca batia à porta do Projac e o Ministério Público anunciava sua entrada nas investigações, a rival Record passou o dia martelando o "escândalo BBB". Santa ironia: a emissora dos bispos da Igreja Universal do Reino de Deus, lar do assistencialismo apelativo de Gugu Liberato, do sensacionalismo do Domingo Espetacular e das peladonas de A Fazenda, desancava o baixo nível da líder de audiência. Logo quem.



Não parecia, até a semana passada, ser suficiente para pôr a pedra tumular sobre o episódio o argumento de que não houve estupro. Em seu depoimento, Monique, assistida por advogados contratados pela emissora: afirmou que se relacionara de forma consensual com Daniel. De acordo com o artigo 217 do Código Penal, que trata desse tipo de crime, caracteriza-se como "estupro de vulnerável" qualquer iniciativa de se aproveitar sexualmente de alguém (mesmo sem a consumação do ato) que não tenha consciência do que se passa. A lei se aplica em especial a menores de 14 anos e a deficientes mentais - mas abrange também a vítima "que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência". Os indícios de que Monique estava sedada por excesso de álcool no organismo abririam a brecha para um processo, mesmo à revelia de sua vontade. Mas três advogados criminalistas ouvidos por VEJA - Janaína Paschoal, Fernanda Tórtima e Roberto Delmanto Junior - sustentam que a declaração da moça é forte o suficiente para suplantar as demais evidências. De toda forma, há questões espinhosas em aberto. Num primeiro momento, conforme se registrou no áudio do que parecia ser uma conversa entre Monique e Boninho que vazou no canal pay-per-view, a participante se revelou confusa a respeito do que acontecera sob o edredom - e afirmou que Daniel teria sido "mau-caráter" se houvesse consumado o sexo enquanto ela dormia. A própria direção do programa embolou o meio de campo ao confirmar a expulsão de Daniel em decorrência de "um grave comportamento inadequado". Ora, se amassos sob o edredom são corriqueiros no BBB, só mesmo o fato de ele ter cometido algo sério explicaria isso. Qual a lógica de expulsar somente Daniel, e não também a moça, se o que houve entre os dois foi "consensual"? Por fim, durante uma entrevista coletiva na quinta-feira, o advogado do rapaz, Wilson Matias, sacou de um argumento que potencialmente pode reavivar a tese de que Monique não estava consciente durante as carícias: "Estando escuro, à noite, depois de uma festa em que você bebeu, pode acontecer de não perceber que o parceiro não está correspondendo. Isso não é nada de outro mundo". Estupro, de fato, é uma realidade bem terrestre.



Os responsáveis pelo BBB se defendem, ainda, com o argumento de que as imagens do suposto abuso não foram veiculadas na edição regular do programa na TV aberta, mas apenas na TV paga, em que o público busca justamente a liberdade de ver cenas tórridas. O argumento se evade à razão fulcral do escândalo: mesmo que a investigação não prospere, a mera possibilidade de que um crime sexual se consumasse nas dependências da atração já justificaria a indignação dos espectadores. Boninho e sua equipe, convenha-se, há muito vêm brincando com fogo. "Essa é uma tragédia anunciada", resume um executivo da Globo. Até o pai do diretor, Boni, ex-todo-poderoso da emissora e uma das maiores autoridades em TV no país, não se furta a afirmar que o BBB exagera (veja a entrevista na página 91). No reality show, garotões e mocinhas - além de tipos vendidos como "polêmicos", como o gay tatuadão e a evangélica da atual edição não oferecem nada além da disposição incansável para o exibicionismo. Enjaulados, são submetidos a situações deliberadas de stress. Partiu de Boninho a ordem de que haja menos camas do que participantes, para incitar os casais a exercitar sua criatividade sob os edredons. E o mais temerário: há farta oferta de bebida alcoólica nas festas de arromba na casa. Em seu depoimento à polícia, Monique relatou ter consumido cinco doses de vodca e uma cerveja. Daniel disse ter bebido cerveja a noite toda. "Mas estava consciente dos meus atos", ressaltou. "Não há dúvida de que existe um estímulo ao consumo e de que isso pode, sim, facilitar comportamentos até criminosos. Esse caso é uma oportunidade para rever o péssimo exemplo que esse programa tem dado", diz a advogada Janaina Paschoal



O psiquiatra e psicanalista Luiz Alberto Py, consultor das três primeiras edições do reality show, relata que os controles da direção sobre o programa foram sendo relaxados. "No começo, a bebida era racionada e havia mais cuidado com o elenco", diz. Nos três anos em que foi o terapeuta de "brothers" e "sisters", ele acompanhou uma bulímica e ajudou a conter a tentativa de suicídio de um participante que pediu para deixar a atração. Certa vez, Py ouviu de Boninho uma reclamação que lhe pareceu esdrúxula. "Ele disse que eu acalmava os competidores, quando o objetivo deveria ser deixá-los mais nervosos", lembra o psiquiatra.



O inacreditável é que, escaldada por seus próprios precedentes e pela lista de escândalos de outras versões do Big Brother pelo mundo (veja o quadro na página 91), a turma de Boninho não se tenha preocupado em intervir com a rapidez e decisão que seriam prudentes em situações assim. Uma eventual aceitação pela Justiça da tese de que houve abuso não seria apenas desastrosa para a imagem do BBB: abriria um flanco para que se processassem criminalmente profissionais do programa.



"Na hipótese de ter havido estupro, o responsável por monitorar a casa deveria intervir imediatamente para ajudar a vítima, sob pena de incorrer em omissão de socorro", diz Janaina Paschoal. De acordo com uma pesquisa do instituto Retrato, que, a pedido de VEJA, ouviu 600 pessoas com mais de 18 anos em seis capitais, 81 % consideraram que o episódio cruzou uma fronteira inaceitável.



Se o BBB encoraja a exposição do lado pior dos participantes, é porque se obedece a uma constatação empírica: isso dá ibope. Aliás, a apelação sexual, a exploração da miséria humana e outras tantas de suas facetas são um elemento intrínseco ao entretenimento popular, cujo valor já era atestado nos espetáculos de vaudeville ou nos freak shows (os "circos de horrores"") do século XIX. Esse apetite continua presente nos espectadores, como provam as pesquisas qualitativas que a Globo promove com as donas de casa que assistem às suas novelas. "Quando o tema surge, as pessoas se apressam em dizer que reprovam a baixaria. Mas, no momento seguinte, traem que gostam de ver lá seus barracos e cenas apimentadas", diz um autor da emissora. É por atiçar os baixos instintos que tais itens constam sempre da programação da TV. Já houve o ciclo da baixaria nos programas de auditório, bem como o dos telejornais policialescos. Mais recentemente, viu-se o reinado de gincanas em que o prazer era ver pobres coitados devorando olhos de cabra ou se esfolando em tarefas físicas excruciantes. Neste momento, a baixaria encontra nos reality shows seu maior bastião. Nesse particular, o Brasil ainda está na fase da inocência. Nos Estados Unidos, o lixo televisivo atinge proporções atômicas. Os participantes de Jersey Shore ou da franquia The Real Housewives encenam diante das câmeras despudores que muitos libertinos não fariam entre quatro paredes.



Quando a baixaria ultrapassa a linha invisível entre o aceitável e o abjeto, contudo, há consequências. O bombardeio de vulgaridade do BBB não tinha sido problema para o mercado publicitário até agora. Muito pelo contrário: com faturamento de 400 milhões de reais em sua atual edição, o programa atinge com força o público adulto das classes A, B e C e é considerado uma vitrine infalível para o merchandising. Mas, ainda que até sexta-feira passada nenhum dos anunciantes tivesse aventado medidas extremas como cancelar seu contrato, a suspeita de estupro causou mal-estar. "A situação é desconfortável", diz um publicitário que representa vários clientes do BBB. Ecoa uma executiva de outra agência: "Se eles não tivessem expulsado o Daniel, as coisas ficariam difíceis. Ninguém quer associar sua marca a um programa em que pode ter ocorrido um estupro". O energético que patrocinou a festa do último sábado havia realizado uma enquete no Twitter em que perguntava qual casal o público achava que iria para debaixo do edredom depois de consumir a bebida. Em face das cenas entre Daniel e Monique, não deu outra: a resposta foi uma chuvarada de menções ao suposto estupro.



O episódio teve ainda uma inoportuna repercussão política: deu combustível aos abutres que defendem a censura, sob o rótulo higienizado de "controle dos meios de comunicação". ONGs liberticidas e o governo federal não demoraram a mostrar os dentes - o Ministério das Comunicações aventou a hipótese absurda de rever a concessão da Globo. Mas pode-se extrair desse limão uma limonada. No momento em que o Supremo Tribunal Federal julga a legitimidade da classificação indicativa, intromissão indevida do estado na programação da TV, o BBB oferece um exemplo cabal de que a própria sociedade, com a reação espontânea dos cidadãos, é capaz de identificar e punir o abuso sem a tutela do estado. A linha, afinal, existe - e isso fica claro sempre que ela é ultrapassada.
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Um comentário:

  1. "O Bbb eu não assisto pela vulgaridade do programa.
    Ali é um topa tudo por dinheiro moderno onde rola tudo: entre eles o cigarro, a bebida e sexo. Mesmo que não aconteça o ato em si já as caricias dizem tudo.Agora a Record aproveita a rivalidade para criticar a emissora. A Record não é um poço de virtudes para atirar a primeira pedra"

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